Num documento escrito para integrar o documento da saúde da SEDES, uma equipa de médicos dentistas e estomatologistas, connosco incluídos, apontou diagnósticos, estudou os problemas a indicou alguns caminhos. Neste pequeno artigo, falamos só de alguns problemas. Quanto às propostas de resolução por nós desenvolvidas, virão a público quando a SEDES divulgar o documento na íntegra.
De assinalar que o conceito de Saúde foi definido na Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1948, como um estado completo de bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença. Esta evidência demonstra claramente a necessidade de uma visão profunda, completa e transversal de todos os fatores que impactam a saúde humana, onde naturalmente se inclui a Saúde Oral, sobre o qual versa este documento e cujo objetivo é trazer clareza ao debate e à discussão de soluções para o problema.
O impacto das doenças orais na vida diária das pessoas é algumas vezes dramático, mas frequentemente subtil, contudo, a influência destas é efetiva e faz-se sentir nas suas necessidades mais básicas, modificando os papéis sociais. A prevalência e a recorrência dessas doenças na vida das pessoas constitui uma “epidemia silenciosa” (Direção Geral da Saúde, 2011).
Saúde Oral: Identificar os problemas
O acesso a tratamentos orais é fulcral para melhorar o estado de saúde e diminuir as desigualdades que existem entre populações. Compreender os processos de desenvolvimento de doenças orais e a sua relação com os padrões socioeconómicos, é crucial para determinar os tempos ideais para intervenções, com o objetivo de melhor limitar os encargos da saúde da população e reduzir as desigualdades socioeconómicas. As disparidades sociais de saúde e cuidados de saúde são particularmente evidentes na cavidade oral e nunca é demasiado cedo ou demasiado tarde na vida para intervir e obter ganhos em saúde.
São várias as repercussões que estes problemas podem acarretar, fazendo consumir recursos que deveriam com vantagem estar incluídos num programa abrangente de saúde oral. Rastreios periódicos identificariam atempadamente lesões orais malignas que acabam quase sempre em intenso sofrimento, tratamentos extremamente onerosos e perda de vidas. Os problemas psicológicos relacionados com a aparência da própria pessoa quando tem falta de dentes anteriores, interferindo com a sua autoestima e motivando a procura de apoio psiquiátrico e de medicação, são outro fator a ter em conta (Guo et al., 2014; Malecki et al., 2015).
Apesar de a saúde oral em Portugal estar inserida em insuficientes e escassos programas de cuidados de saúde primários, a maioria desses serviços de estomatologia ou medicina dentária continuam a ser prestados pelo setor privado, a expensas exclusivas do utente, o que constitui, por si só, uma enorme barreira na acessibilidade aos cuidados de saúde oral (Lopes, 2012 – ainda muito atual).
Trata-se de uma grande carência atual do Serviço Nacional de Saúde (SNS). De facto, apesar de todos os avanços de que o SNS foi alvo, é importante referir que um dos serviços de saúde onde não existe universalidade é justamente o da saúde oral. A par com a saúde mental, continua a ser o parente pobre do SNS. Por outro lado temos uma vulnerabilidade dos profissionais de saúde oral, até porque a maioria dos médicos dentistas é trabalhador independente no setor privado. De facto, com a exceção da Região Autónoma da Madeira, não existe nenhuma carreira pública que permita a estes profissionais estarem integrados nos quadros do SNS. Entretanto, a falta de respostas de proximidade em saúde oral tem levado as ARS, através dos ACES (Agrupamentos de Centros de Saúde), à celebração de contratos de prestação de serviços com médicos dentistas, através de empresas de trabalho temporário, existindo hoje cerca de 135 a 150 médicos dentistas em centros de saúde, escassíssimos para assegurar estes cuidados primários, sem um estatuto condigno e sem qualquer garantia de contratação estável.
Em simultâneo, temos um excesso de médicos dentistas, que estão a ser formados (mais de 600 por ano!) para o desemprego, subemprego e trabalho precário.
Por outro lado, os Serviços hospitalares de Estomatologia, também eles escassos e subdimensionados, existem hoje em apenas 28 dos 51 Centros Hospitalares portugueses do SNS, são povoados por cerca de 150 médicos especialistas em Estomatologia, da carreira médica, e não se destinam a prestar cuidados primários mas sim cuidados diferenciados. Tratam os doentes urgentes ou em risco de vida, os doentes com multipatologia, polimedicados, que precisam por exemplo de preparação oral antes de uma cirurgia cardíaca, de um tratamento de quimio ou radioterapia ou de um transplante de órgãos. A estes somam-se os doentes ditos com necessidades especiais, outrora designados como ”deficientes”, que sempre foram tratados nestes Serviços dada a sua frequente incapacidade de colaboração, necessitando por isso de meios hospitalares diferenciados como sedação ou anestesia geral, para o seu conveniente tratamento.
Por outro lado, as clínicas privadas são alvo de imposição de excesso de taxas e licenças, apesar de, em 2017, uma auditoria do Tribunal de Contas ter concluído que “as taxas pagas pelos prestadores de saúde (7,7 milhões de euros em 2015) são substancialmente superiores aos custos operacionais” dos serviços reguladores e de fiscalização e recomendou que os Ministérios da Saúde e das Finanças procedam à revisão em baixa dos valores cobrados aos regulados, no sentido de proteger os encargos suportados pelos utentes, o que ainda está por fazer.
A última e mais recente taxa vem da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e relaciona-se com a licença de utilização dos aparelhos de radiologia, que, por absurdo, pode transformar um simples aparelho de radiologia intraoral, cujo custo é de cerca de 5000 euros, numa despesa de ainda mais 10000 euros, só para efeitos de licenciamento. Inacreditável!
Além disso, o dumping e o marketing desleal em saúde tem vindo a acentuar-se nos últimos anos, permitindo que determinados operadores económicos em saúde e várias outras empresas que orbitam em torno desses, consubstanciem uma publicidade por vezes enganadora ou mesmo fraudulenta.
A saúde oral, muito esquecida em Portugal, tem um péssimo prognóstico, se tudo o que aqui foi brevemente apontado não for alterado. Bem sabemos que a mudança não pode ser realizada de um dia para o outro, mas o percurso correto tem que começar a ser delineado.
Mais uma vez alertamos: os portugueses merecem o direito à saúde na integra, e se, em Saúde Oral, nos queremos equiparar aos países da União Europeia, ficamos com a ideia bem firme de que estamos muito longe das estratégias de sucesso que eles implementaram. Vamos entrar na Europa?
Equipa que realizou o documento: Ana Sofia Lopes, Filomena Almeida, J. Serafim Freitas, Miguel Freitas e Rui Moreira.