A importância de uma boa saúde oral é inquestionável, mas parece que temos um longo percurso, para fazer com que os nossos governantes entendam.

Aliás, quem ler o Orçamento Geral do Estado para 2022 verificará que o Governo refere ter intenção de manter o reforço da capacidade do SNS, “com um aumento do orçamento de cerca de 700 milhões de euros, de forma a recuperar rapidamente a atividade assistencial, através da contratação adicional de profissionais de saúde e do ganho de autonomia dos serviços de saúde para contratarem profissionais em falta”. Diz ainda que “Em colaboração com os municípios, prevê-se também um alargamento das respostas em saúde oral”.

Claro que sabemos, que prioritário é resolver com urgência aquilo que põe em perigo a vida das pessoas, como a crise há muito anunciada das urgências de obstetrícia / ginecologia, a previsível falta de médicos de família, as urgências que fecham constantemente, as listas de espera para cirurgia que se avolumam… é tudo um panorama muito triste e sem palavras para descrever. Os portugueses passam pois por uma fase de sofrimento em vários aspetos nunca vista! E a má governação não pode dizer que a culpa é da guerra na Ucrânia ou, como agora é moda, que “o problema é estrutural”!

Mas em relação à Saúde Oral, pela qual lutamos, estará a avançar-se na direção certa? Com as medidas e a velocidade que se impõem? Não nos parece!

Do resto nem se fala, mas esta é a área que abraçamos com todo o empenho e em prol das pessoas continuaremos a falar e a escrever.

Enquadramento: dos Hospitais aos Centros de Saúde

Note-se que, em Portugal, existem 51 unidades hospitalares do SNS, onde existem apenas  28 serviços ou unidades de Estomatologia, onde trabalham cerca de 145 estomatologistas. Estes Serviços, embora sejam muitas vezes “forçados” a prestar cuidados primários, por não haver a quem enviar os doentes, não se destinam nem estão dimensionados para prestar esse tipo de cuidados. Destinam-se, isso sim, e exclusivamente, a dar cobertura aos casos urgentes, aos doentes graves, aos doentes deficientes ditos “doentes especiais”, e a todos aqueles com multipatologia e polimedicação.

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Podemos dizer que este é o topo da pirâmide de cuidados em Saúde Oral e têm previsto o seu desenvolvimento no documento do Ministério da Saúde da Rede de Referenciação Hospitalar de Estomatologia de 2017.

De facto, desde 2012 está a ser feito um grande esforço formativo de 14 vagas anuais para formação de especialistas, no exato limite das capacidades formativas da especialidade. Isso está a permitir uma verdadeira renovação geracional que, além disso, visa atingir a longo prazo o número de 320 especialistas a nível do Continente (1 estomatologista para cada 30000 habitantes) e um primeiro aumento do número de Serviços de Estomatologia em zonas que, pela sua  sobrepopulação  ou baixa acessibilidade, necessitam urgentemente de Serviços de Estomatologia.

É disso exemplo o Centro Hospitalar de Trás os Montes e Alto Douro (Hospital de Vila Real) onde, a 28 de julho, começou finalmente o atendimento estomatológico especializado. O primeiro caso foi o atendimento de um doente que necessitava de preparação estomatológica para cirurgia cardíaca, evitando que o doente tivesse que ir ao Porto para esse fundamental atendimento! Claro que esta é uma gota no oceano porque hospitais como Viseu, Amadora-Sintra (Fernandes da Fonseca), Almada (Garcia de Orta), Beja e Portimão, ainda não têm Estomatologia. E a lista é muito mais extensa!

O problema maior continua, no entanto a ser nos cuidados primários em que tarda a tomada das medidas que se impõem, ou seja, a existência de profissionais suficientes, com vínculo ao SNS, que garantam pelo menos a cobertura da saúde oral básica às camadas mais desfavorecidas. E a saúde oral básica ocupa-se fundamentalmente da prevenção, do aconselhamento e orientação para uma boa higiene oral, e da atenção ao crescimento e desenvolvimento da face o que ajudará as crianças a serem adultos saudáveis, (imprescindível!!!) e a oferta de tratamentos simples como as destartarizações, extrações e restaurações dentárias além de reabilitação oral com substituição dos dentes perdidos. Só assim se manterá quem mais necessita, afastado de infeções orais e de incomodativas dores, além das doenças sistémicas que se podem desenvolver, isso para não falar de problemas de auto-estima e desenvolvimento social. O SNS foi preconizado para ser universal e o caminho feito até aqui, em vez de fazer avançar esta universalidade têm retirado cada vez mais os direitos previstos a muitos dos cidadãos portugueses. A injustiça social tem imperado, e tem-se acentuado nos últimos 20 anos. Por isso, promover bons cuidados de saúde oral é tratar as pessoas, especialmente as mais carenciadas e vulneráveis, com alguma humanidade.

Lembrando a Carolina Beatriz Ângelo, será necessário aparecerem novas “Carolinas”? No início do Sec. XX, foi a primeira mulher a votar, e a primeira mulher médica a entrar num bloco operatório!  Aqui já não é disso que se trata. É sobre a injustiça e divisão clara “entre os que podem e os que não podem”, o que acaba por ser uma violação da letra e do espírito da Constituição.

Entretanto, nos centros de saúde, os poucos médicos dentistas que aí existem (cerca de 150) estão vinculados de forma ilegal e sem qualquer tipo de dignidade, pois estão contratados em regime de prestação de serviços a empresas terceiras. Ou seja, as situações ilegais, existem dentro do próprio Estado, com anuência desse mesmo Estado. Aliás, mesmo que houvesse apenas um médico dentista em cada concelho, seriam necessários 308, e mesmo assim “cobririam” apenas 4,5% dos portugueses, e de uma forma muito desigual.

Por isso é que, assim como existem médicos especialistas em Estomatologia no SNS, praticamente todos nos cuidados secundários e terciários, ou seja na carreira médica hospitalar, é de particular importância o envolvimento de médicos dentistas no SNS, especialmente nos cuidados primários e, por isso, é da maior urgência a criação de uma carreira especial médico-dentária no SNS para os médicos dentistas.

Nessa conformidade, a Organização Mundial de Saúde (OMS) indica a necessidade de um médico dentista para cada 1500 habitantes e por isso, e para começarmos pelos que mais necessitam,  os municípios deverão recensear a sua população carenciada e reportar a mesma, para que se criem nos ACES gabinetes de Saúde Oral que permitam garantir a cobertura populacional de um médico dentista por cada 1500 habitantes carenciados.

Claro que, os doentes com patologias sistémicas graves associadas, com necessidades especiais ou com patologias que necessitem da diferenciação dos cuidados hospitalares, deverão continuar a ser triados e enviados aos Serviços de Estomatologia hospitalares.

Os médicos dentistas trabalhariam assim com um vínculo de contratos de trabalho, contratados pelo Estado, e integrados na carreira especial médico-dentária, sem vínculos a empresas exteriores, que atualmente funcionam como um intermediário, num exercício de falta de bom senso que só pode interessar à voracidade de lobbies… exatamente como funcionam os médicos tarefeiros nas urgências hospitalares… a engordar as bolsas das empresas de recrutamento, quando deveriam ser os hospitais a contratar diretamente todos os médicos de que necessitam, seguramente com menor despesa! Elementar, meu caro Watson!

Afinal há soluções!

Nos ACES, teria que se acelerar a instalação de cadeiras de Saúde Oral, consoante a necessidade em cada município, de forma a abranger toda a população mais necessitada, que se calcula atingir globalmente cerca de 20%.

A urgência da organização e estruturação da atividade do médico dentista nos Serviços Públicos, com um adequado enquadramento em carreira profissional própria e ajustada à complexidade da sua formação e às suas competências e autonomia clínica médico-cirúrgica, seriam o garante de uma justa, progressiva e apropriada adesão dos médicos dentistas ao setor público e, também, a oportunidade para uma necessária restruturação organizacional dos serviços públicos de saúde oral ao serviço dos portugueses, com um claro benefício para o SNS.

Para tornar mais universal e equitativo o acesso aos cuidados de saúde oral bastaria assim considerar a necessidade de um médico dentista por cada 1500 habitantes abaixo do limiar de pobreza. A cobertura integral do território nacional obrigaria à contratação de 1379 profissionais e um encargo anual de 41580 € por médico dentista + assistente, (estimando 1600 + 800 euros de vencimentos brutos + encargos sociais), ou seja, o impacto financeiro dos custos laborais para a cobertura total da população abaixo do limiar de pobreza seria de apenas 57338820 €. São pouco mais de 57 milhões de euros/ano!

De acordo com o relatório do OE para 2021, previa-se que o Orçamento (receita consolidada) do Ministério da Saúde iria ascender a 12565,4 milhões de euros. Seria assim um aumento de apenas 0,46%, e teríamos servida a franja da população mais carenciada. Na realidade é apenas um aumento ridículo na despesa total do Estado (100,755 milhões de euros) ou seja apenas 0,0569% de aumento da despesa.

A outra opção é continuar a manter a saúde oral e portanto a boca dos portugueses quase fora do SNS! Palavras para quê?