A situação criada pela desajeitada transposição em Portugal de uma bem intencionada Diretiva Europeia sobre proteção e segurança radiológica (Decreto-Lei n.º 108/2018, a vigorar em pleno desde 2 de abril de 2022), fez-nos escrever este artigo para salientar esta injustiça, que caiu como uma “bomba nuclear” sobre o setor, que tem tirado o sono a muitos e que ameaça a saúde pública.

Desde há décadas que nos consultórios e clínicas dentárias, a radiologia tem sido (e deve ser!) regulada, de forma exequível, desburocratizada e simples. Através de contratos de licenciamento e verificação periódica dos aparelhos radiográficos com empresas licenciadas para o efeito, a Direção Geral de Saúde (DGS) monitorizava a segurança dos procedimentos imagiológicos destes estabelecimentos de saúde, através de licenciamento, verificação periódica da boa manutenção de equipamentos e registos de dosimetria individual de todos os trabalhadores. Registos esses quase sempre a zero, já se vê. Já tínhamos isto tudo a funcionar! Faltava com certeza mais fiscalização!

Em Portugal faz-se muitas vezes tábua rasa do passado. E muitas vezes sem razão. Mudam-se os atores, e começa-se tudo de novo. Aqui, foi o caso. A DGS poderia e deveria ter continuado com esta nobre função. Para os novos atores está a ser toda uma aprendizagem. Basta ver as contínuas atualizações do site da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

Com efeito, a APA, passou a ser a entidade reguladora responsável pelos processos de registo e de licenciamentodos equipamentos radiológicos, e por exemplo, não sabia sequer que nesta área da saúde oral também seria útil falar, na Ordem dos Médicos, especificamente com a especialidade de Estomatologia.  Compreendemos a APA, nunca regulou as questões da saúde e não teria, à época, o conhecimento e a competência para perceber tudo o que estava em jogo e quem eram, como agora se diz em bom português, os stakeholders…

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Por outro lado a IGAMAOT (Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território), só o nome é toda uma enciclopédia… é um organismo inspetivo, que aplica a lei cegamente. Não foram eles que fizeram a lei, nem sequer pensaram na sua regulamentação. “Apenas fiscalizam e aplicam coimas” (sic). Muito pesadas! Aliás nunca  tinham fiscalizado estas realidades sanitárias e obviamente não estavam preparados para isso.

Curiosamente estes dois organismos públicos esvaziaram o mercado disponível de especialistas em física médica, procedendo ao seu exaustivo recrutamento, o que torna inviável o cumprimento de uma das exigências centrais da nova lei: precisamente, contratar físicos médicos para preparar o licenciamento radiológico das clínicas. A peso de ouro, já se vê! Apenas “sobraram” 16 físicos médicos para um universo de 6000 clínicas. Hoje, os físicos médicos são os homens mais procurados do país, muito mais do que “o rei dos catalisadores”…

As Ordens profissionais foram apanhadas neste comboio em andamento. Aliás, e por exemplo  dentro da Ordem dos Médicos esta questão está muito longe de interessar apenas à Estomatologia. Há pelo menos mais cinco especialidades médicas cuja atividade clínica tem implicações mais diretas com a problemática da segurança radiológica. E temos atividades tão diversas que, por exemplo, as implicações desta lei para a Medicina Nuclear e Radioncologia deveriam ser muito diferentes das implicações para a Estomatologia. Mas infelizmente, na prática, a legislação trata tudo por igual.

Com efeito, e das menos para as mais representadas: existem 97 especialistas em Medicina Nuclear, 123 especialistas em Cirurgia Maxilofacial, 172 em Radioncologia, 197 em Neuroradiologia,  586  em Estomatologia e 1041 em Radiologia. A numeracia totalizava assim em 2021, 2244 médicos especialistas.

Dada esta diversidade de problemas, percebemos que, porque ainda não estávamos unidos, se aproximavam tempos difíceis. E por isso fizemos um grande esforço de união das classes englobando médicos (estomatologistas, radiologistas e outros), médicos dentistas, odontologistas, médicos veterinários e, logo em setembro de 2021, promovemos uma petição denominada “Radiologia na Estomatologia, Medicina Dentária e Medicina Veterinária”, que, em apenas dois meses, com esta união de diferentes classes, fez um percurso em que até o Bastonário da Ordem dos Médicos, Dr. Miguel Guimarães, assinou a petição. Ele e mais 4561 profissionais… nunca se tinha visto tanta unanimidade nos profissionais de Saúde Oral, da Radiologia e da Medicina Veterinária. Acordámos!

Essa petição, não convenceu o Sr. Primeiro Ministro a receber-nos, mas teve um efeito muito importante: acordou definitivamente as classes para a consciencialização do problema, da gravidade do momento e para a grande necessidade de estarmos todos unidos.

Além disso, logo em outubro de 2021, foi possível concretizar uma posição conjunta da Ordem dos Médicos, Ordem dos Médicos Dentistas (OMD) e Ordem dos Médicos Veterinários (OMV), em que se solicitava uma audiência à Sr.ª Secretária de Estado do Ambiente. Também debalde… Na prática quando o Estado, que confiou às Ordens profissionais da Saúde funções tão importantes de regulamentação e fiscalização das profissões, nem sequer as recebe, quando em uníssono, elas o pedem, é mesmo muito mau sinal…

Mas afinal, o Governo não recebeu em conjunto os representantes das classes profissionais. E pior do que não receber o Povo…ainda por cima, caiu!!! Num penoso processo, que se arrastou até à nomeação do novo Governo, que só tomou posse a 30 de março de 2022.

Nos últimos meses, e após 2 de abril de 2022, a lei entrou em vigor pleno, e assistimos a uma autêntica caça às bruxas, e a um fervor inspetivo inusitado. O que não aconteceu no resto da Europa civilizada! Onde se perceberam as especificidades das profissões da saúde, se dialogou a sério com as suas organizações representativas e se legislou responsavelmente!

O que fazer?

Exigir uma boa revisão da lei! Não somos criminosos ambientais, e por isso, não devemos ser tratados como se o fôssemos. Queremos cumprir a lei, mas uma lei ajustada à nossa realidade, e que seja possível cumprir.

Numa palavra e só para citar alguns problemas, não há suficientes empresas certificadoras, não há físicos médicos, e não há vagas nos cursos suficientes para os profissionais se poderem inscrever. Além disso todo o processo é muito burocrático e muitíssimo caro!

Aliás, se não for alterado urgentemente este enquadramento legislativo, a maioria das pequenas e médias clínicas de Saúde Oral vão obviamente encerrar pois, como não se conseguirão legalizar, enfrentam coimas de valores elevadíssimos, absolutamente desproporcionados para a atividade económica desenvolvida (entre 100000 e 300000 euros/ano) e, portanto, impossíveis de liquidar. Com uma lei incumprível e uma coima mínima de 24000 euros, que pode atingir cinco milhões de euros, já se antecipa o resultado…

A aniquilação dos profissionais de saúde oral seria a derrota da saúde oral dos portugueses, com o que enfrentaríamos um desastroso problema de saúde pública; O que a COVID-19 não conseguiu, conseguiria esta lei!

E então, porque é que o processo não avança? Porque é que não se altera rapidamente a lei!

Em política, o que parece, é!

Não esquecer que há aqui um negócio de 6000 clínicas a 10000 euros cada. É só fazer as contas!

Trata-se assim de um maravilhoso negócio de 60 milhões de euros só para a nova legalização radiológica, em muitos casos de aparelhos que já estavam legalizados e que até pagavam taxas anuais de vistoria. São 60 milhões de euros, só na Saúde Oral.

Por outro lado, já todos sabemos que acabar com o negócio dos pequenos consultórios e clínicas é a estratégia que convém aos grandes grupos económicos da saúde. E por isso, esta espera desesperante é tão conveniente!

E depois ainda há o negócio dos cursos. De 300 horas, de 100 horas, à la carte, começaram a aparecer. São mais 9 a 18 milhões de euros de faturação! Noutros países da Europa civilizada os cursos são de atualização, com muito menos horas (por exemplo no Reino Unido e em França são de 5 e 8 horas respetivamente e na Bélgica, Dinamarca e Itália, a formação universitária de base é suficiente para o simples reconhecimento das competências. Assiste-se até à caricata situação de que um curso de 8 horas em França é reconhecido em Portugal pela APA… onde exige um curso de 100 horas! Estará Portugal na União Europeia?

E por isso é que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Médicos Dentistas ainda não promoveram qualquer curso. Para transformar profissionais competentes na área em profissionais competentes na área? De facto, no atual formato, os cursos são absurdamente exaustivos, desnecessários e redundantes, e apenas servem lobbies insaciáveis que as Ordens profissionais, obviamente, não podem nem devem alimentar!

E tudo isto para resolver um não problema de segurança radiológica, cujo histórico de incidentes é tendencialmente zero…

Por outro lado, na formação universitária e profissional dos estomatologistas, dos radiologistas, e de outras especialidades médicas, e na formação universitária pré-graduada dos médicos dentistas, estava já bem presente a vertente de radiologia, incluindo obviamente a radioproteção;

Mas não esqueçamos, os estomatologistas, os outros colegas médicos e os médicos dentistas estão, no entanto, recetivos à formação contínua, adequada aos seus conhecimentos e competências, num formato de atualização, com o objetivo de garantir a adequação dos exames prescritos e das técnicas usadas, e a segurança de todas as pessoas envolvidas;

Há no entanto sinais de esperança… com uma luz muito ténue, que aparece ao fundo de um longo túnel…

Em face desta incrível situação, as Ordens profissionais da saúde (OM, OMD e OMV) e um grande número de outras associações profissionais representativas de médicos, de médicos dentistas, de odontologistas e de médicos veterinários, querem todas alterar a Lei.

O anterior Ministério do Ambiente quis alterar a Lei, fez uma proposta e até pediu pareceres às Ordens profissionais. Entretanto, finou-se…

A própria APA quer alterar a Lei, fez uma proposta e pediu pareceres às Ordens profissionais. Sabemos também de fonte segura que o atual Ministério do Ambiente também estuda alterar a Lei.

Ou seja, meio mundo quer alterar a lei, mas a lei nunca mais é alterada…

Em conclusão, estamos num estranho país em que os legisladores, perante um não problema de segurança radiológica, criaram uma Lei draconiana para resolver um problema que nunca existiu!

Com isto, a Saúde Oral, já longe de estar num panorama sustentável, é ainda mais “puxada” para um lugar asfixiante. Os profissionais de saúde, deveriam ser tratados com dignidade pela tutela. E receamos acordar um dia e já pouco haver a fazer.

Será pedir muito que a legislação seja alterada rapidamente? Governo: precisa-se!

J. Serafim Freitas, estomatologista, Presidente do Colégio da especialidade de Estomatologia da Ordem dos Médicos, Observatório Saúde e solidariedade da SEDES

Ana Sofia Lopes, médica dentista, coordenadora da ação social para uma saúde oral igualitária Dariacordar/zero Desperdício, Observatório Saúde e solidariedade da SEDES