Assinala-se hoje, um pouco por todo o mundo, o Dia Internacional da Criança com Cancro. Numa altura em que a Covid-19 monopoliza o espaço noticioso, hoje, 15 de Fevereiro, é dia de erguer bem alto a bandeira destas crianças, adolescentes ou jovens adultos com cancro. É dia de olhar para eles, para os Pais, para a legislação ou apoios estatais insuficientes, para as dificuldades dos sobreviventes ou das associações que lhe são dedicadas. É dia de olhar para os planos oncológicos nacionais e querer ver lá uma secção, um parágrafo, uma linha que fale de oncologia pediátrica, para que sintamos que este drama (o cancro pediátrico é a primeira causa de morte por doença infantil) pode ser mitigado, assim o queiram os intervenientes.
A nível mundial, a realidade do cancro infantil pode condensar-se em duas estatísticas que reflectem os extremos de um contínuo:
- A cada três minutos há uma criança/adolescente/jovem adulto que morre de cancro;
- Uma iniciativa global para o cancro infantil poderá salvar um milhão de vidas até 2030.
Bono, o famoso cantor, terá verbalizado uma tragédia que teima em repetir-se: o sítio onde se vive não devia determinar se se vive. Se em Portugal ou na Alemanha, a taxa de sobrevivência do cancro pediátrico se situa na faixa dos > 80%, na Bulgária está compreendida entre os 61% e os 80%, mas na Geórgia, tal como na Nigéria ou no Uganda, situa-se entre os 21% e os 40%. Ainda há várias Europas e, noutras partes do mundo, os números são inaceitáveis. O lema de um hospital pediátrico americano – nenhuma criança deveria morrer na alvorada da vida – é ainda um desejo global por cumprir.
A frieza cruel das estatísticas diz-nos que, nos países de rendimento alto, em cada 100 crianças com cancro [para efeitos deste artigo, criança também inclui adolescente ou jovem adulto] há 80 que se salvam; nos países de rendimento baixo ou médio (onde se verifica o maior número de casos) salvam-se apenas 20. O pensamento de Bono continua desgraçadamente actual: o sítio onde se vive determina – ainda – se se vive.
Foi ao confrontar-se com esta realidade que a comunidade internacional ligada à oncologia pediátrica se uniu em torno de um projecto comum. Lançado em 2018 pela Organização Mundial de Saúde, a Global Initiative for Childhood Cancer (Iniciativa Global para o Cancro Infantil) tem dois objectivos fundamentais:
- Atingir uma taxa de sobrevivência global de 60% até 2030 e, com isso, salvar um milhão de vidas;
- Eliminar o sofrimento das crianças.
A frieza das estatísticas também pode revelar esta esperança legítima, pois a maioria dos cancros é curável, na sua grande parte com medicamentos genéricos relativamente pouco dispendiosos. Se para algumas destas crianças com cancro (mais de 400 mil por ano) o desfecho é difícil, pois o avanço da técnica não cura tudo, para outras existe um futuro. O que é preciso fazer? É claro: apostar no diagnóstico precoce, evitar o abandono dos tratamentos e a malnutrição, legislar de forma adequada, garantir pessoal qualificado e cuidados de saúde convenientes.
Durante o tempo que demora a leitura deste artigo, uma, duas ou três crianças morrerão de cancro. Têm um nome, são protagonistas de uma história de luta, de conquista e de derrota em proporções injustas. Têm pais, têm irmãos. Teriam um futuro, não fosse a doença atravessar-se no caminho e roubar-lhes o mundo. Mas, se a morte de uma criança é sempre uma tragédia, a vida de um milhão não pode resumir-se a uma estatística. Também estas serão heroínas de uma história que se cumprirá até ao limite, de uma aventura plena de representações fortes, como espanto, dor, angústia, confiança, vontade. Imaginar um nome ou um rosto é humanizar os números, afirmar que há algo de nós em cada um destes casos.
Na árvore da vida, todas estas crianças com cancro – as que partiram e as que conseguiremos salvar – são donas de uma folha onde inscrevemos uma recordação, ou onde imaginamos um tempo que há-de vir, apesar de todos os desafios. O empenho dos vários agentes – políticos, profissionais de saúde, organizações não governamentais – dar-nos-á a medida do nosso compromisso com o futuro, isto é, ditará a forma como protegeremos esta árvore da vida.
Hoje, 15 de Fevereiro, serei acompanhado pelas minhas próprias memórias e pela lembrança das crianças que entraram pela porta da Acreditar. Também serei acompanhado pelas histórias de três crianças com cujos pais ou avós me cruzei: a do M., do G. e da C., esta do lado de lá do Atlântico. São histórias diferentes, mas que têm em comum a certeza da esperança.
Termino como comecei: a cada três minutos há uma criança que morre de cancro; se fizermos o que nos compete e está acessível, até 2030 podemos salvar um milhão de vidas. Ambas as realidades têm por trás histórias de vida, nomes e rostos que se conhecem ou imaginam. Não só na Zâmbia, no Vietname ou no Venezuela, mas também em Portugal, ao lado de tantos de nós.