À primeira vista o que causa maior impressão e susto nos sem-abrigo é vê-los; e as pessoas a quem eles impressionam e assustam são as que os vêem. Não é certo, ou pelo menos não há a certeza, de que os sem-abrigo façam impressão a outros sem-abrigo; alguns farão impressão, mas talvez por outras razões. Haverá também entre os sem-abrigo pessoas que fazem impressão a si próprias; mas muita gente faz impressão a si própria. Não há razão para pensar que os sem-abrigo sejam diferentes das outras pessoas, nomeadamente daqueles a quem assustam, e daqueles que lhes fazem impressão.
Quem fica impressionado acha que a sua impressão tem a ver com o facto inusitado de os sem-abrigo não terem casa. Ter casa é uma coisa importante; mas não ter casa não faz de nós membros de outra espécie. Não é também verdade que aqueles que têm casa devam achar que há qualquer coisa indecente em terem casa; e não há. Ou, embora se fale disso mais abertamente, que devam achar que há qualquer coisa indecente em alguém não ter casa; e também não há, ou pelo menos não há da mesma maneira. Muita da impressão que os sem-abrigo nos fazem é a impressão confusa que sentimos em relação a coisas cuja afinidade pressentimos: como entre salsa e coentros, ou entre um pé e uma mão.
Embora por definição os sem-abrigo não tenham casa, rodeiam-se muitas vezes de coisas que nos são familiares; e que lhes devem ser familiares. Há decerto tendas ou cartões; mas a essas protecções não assiste uma pungência acrescida ou particular; não nos assusta ou impressiona só por si a imagem das muitas pessoas que dormem fora de casa, e que associamos às férias ou à tropa, a pausas na sua vida normal. É muitas vezes onde imaginamos a vida normal, nos vãos dos prédios, cobertos totalmente por cobertores, que assusta e faz mais impressão ver como foi familiarmente arranjada uma mesa de cabeceira; e como em cima da mesa de cabeceira há fotografias e objectos pessoais; e como se arrumam os sapatos a direito.
Podemos entrever mais nitidamente a causa da nossa impressão nesses quadros de domesticidade calma. O que nos causa impressão não é os sem-abrigo pertencerem a uma espécie em relação à qual não reconhecemos semelhanças, mas o serem tão parecidos connosco; a barba e o cabelo que assustam crianças e animais, e que fazem os adultos mudar de passeio, são afinal arbustos de pouca eficácia, por detrás dos quais se esconde uma paisagem conhecida. Temos dificuldade em admitir que essa paisagem nos é familiar, e por isso achamos que precisa de ser corrigida. Com o tempo, as medidas que tomamos acabam por extinguir a nossa impressão, e melhorar as coisas para toda a gente; e a ideia de que somos parecidos com quem nos assusta deixa de nos fazer impressão.