A Iniciativa Liberal (IL) avançou, na semana passada, com um Projeto de Lei que visa a extinção de 11 das 20 ordens profissionais existentes em Portugal, por considerar que a sua existência não está alinhada com o mercado de trabalho dos «países desenvolvidos da União Europeia». Logo na semana em que o João Cotrim de Figueiredo aceitou o meu pedido no LinkedIn, isto há azares.

Ordem dos Biólogos, Contabilistas Certificados, Despachantes Oficiais, Economistas, Médicos Veterinários, Notários, Nutricionistas, Revisores Oficiais de Contas, Solicitadores e Agentes de Execução, Fisioterapeutas e Ordem dos Assistentes Sociais são as instituições que o partido liberal quer extinguir, deixando 11 classes profissionais ao Deus-dará.

Aquilo que a Iniciativa Liberal faz, para começar, é separar as profissões que neste momento se regem por associações profissionais: as primeiras são aquelas onde «a natureza da profissão exige uma prática continuada séria e certificada, relacionada diretamente com os direitos fundamentais dos cidadãos»; e depois há as outras, que são reguladas «sem lógica nem critério».

Ou seja, para um liberal, um médico é um profissional a quem deve ser exigido dezenas de anos de estudo, estágio e a obrigação de estar regulado por um Estatuto e Código Deontológico; mas um médico veterinário – como é um médico de segunda – deve estar entregue à selvajaria do mercado de trabalho, sem nenhuma instituição que o proteja dignamente.

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A questão é que – corrijam-me se estiver errado – não há profissões de primeira nem profissões de segunda. Eu sei que, tipicamente, um liberal é uma espécie que dá um beijinho só, estudou no Restelo a vida toda e acha que a empregada doméstica não deve sequer ousar dirigir-lhe a palavra. Assim seja. Mas não queiram levar para esse cisco o país todo.

A título de exemplo, a Ordem dos Contabilistas Certificados – uma das que o partido de Cotrim Figueiredo pretende extinguir – é só a maior ordem profissional do país. Tem mais de 70.000 contabilistas certificados: e aqui a palavra-chave é certificados – são certificados, através de uma licenciatura, estágio profissional e exame teórico.

Só durante 2020 respondeu a mais de 100 000 dúvidas que os membros tiveram. Era comum, na fase mais aguda do confinamento, vermos a Dra. Paula Franco na OCS a explicar as medidas que o Governo disponibilizou – tranquilizando não só os profissionais mas também os cidadãos que tinham negócios fechados e que se viam sem trabalho.

Também durante a pandemia, conseguiu algo inimaginável para um contabilista dos anos 90 e 2000: férias. Porque o Estado nunca pára, os contabilistas também nunca podiam parar. Só este ano, com a intervenção intensiva da Ordem junto do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, é que se conseguiu que se legislassem as Férias Fiscais – uma medida que suspendeu as obrigações junto da Autoridade Tributária no mês de agosto. Mais uma vez isto não foi uma medida que beneficiou apenas as summer vacation dos contabilistas: ajudou todo o pequeno empresário que, nestes momentos de pandemia, enfrentou enormes problemas de tesouraria.

Podia fazer isto com as restantes dez áreas de que a IL não gosta: estas associações de interesse público são importantes porque, para além de contribuírem para a responsabilização das profissões, fazem garantir aos seus profissionais liberais que não estão sozinhos. Sem estágio, um contabilista não sabe trabalhar com o pequeno empresário que pensa que tem de dar ao estado 41% do que ganha (“então, são 23% de IVA e 18% de IRC”, ouvi eu, uma vez). Sem estágio, um agente de execução não sabe trabalhar com o E-Leilões. Sem estágio, os médicos veterinários pensam que os animais que vão encontrar estão tão limpos quanto os da Universidade.

Uma das coisas mais irónicas desta medida – para além do facto de a IL usar como exemplo os «países desenvolvidos da Europa», enquanto todos os países nórdicos têm dezenas de boards e councils – é o argumento de que muitas destas ordens têm a sua existência e crescimento assentes em interesses instalados nestas profissões. Mas deixam de fora do projeto profissões como os advogados ou os médicos, cujos representantes estão constantemente a tecer declarações públicas parciais.

E, no fim, quem fica prejudicado é, sobretudo, o consumidor – que tem à sua frente um profissional despreparado e sem uma componente prática essencial ao exercício da profissão.

Coincidentemente, duas das profissões que a IL quer que se continue a reger por um código deontológico, aquelas que se inserem no grupo das profissões de primeira, são os advogados e os engenheiros. Ora, um estudo feito por mim e com uma taxa de erro de 150%, indica-me que 99,9% dos liberais estão dentro destas duas áreas. A frase anterior é, obviamente, uma sátira, mas a verdade é tem alguma confirmação: no topo da hierarquia do partido, Ricardo Pais Oliveira, Mariana Nina ou João Caetano Dias são alguns exemplos disso.

Ora isto é um bocado como eu, que quando perco 3×0 no UNO, também começo a inventar regras e a querer expulsar todos os meus adversários.

Em suma, a medida elitista que a Iniciativa Liberal agora propõe ao Parlamento é não só uma enorme falta de respeito para os profissionais destas áreas, mas também um grande atentado ao bom nome destas profissões.

Em vez de se preocupar com os problemas que realmente interessam dentro das Ordens (por exemplo, a criação de bolsas sociais para estudantes economicamente desfavorecidos que procurem aceder à profissão), preocupa-se em hierarquizar as profissões e encaminhar este país para um rumo de profissionais medíocres.

Se for para acabar com ordens, que seja a ordem das mães de crianças pequenas que as obrigam a acabar de comer uma sopa ralada. Não à ditadura das sopas raladas!