O termo “cosmética contabilística”, recentemente popularizado por um candidato à presidência do Futebol Clube do Porto, teve origem no termo anglo-saxónico “Cosmetic Accounting”, que ocorre sempre que as empresas utilizam o seu conhecimento das regras contabilísticas para manipular os resultados apresentados nas suas contas (Karim et al, 2011).
Este tipo de engenharia financeira (ou ‘práticas criativas de contabilidade’, como alguns autores americanos chamam) pode ser enquadrada como legítima ou ilegal – situação em que ajustamentos terão de ser feitos. Estas práticas contabilísticas vão sempre de encontro a qualquer que seja o objetivo do órgão de gestão: o pagamento do menor imposto possível (frequente nas micro e pequenas entidades), ou, no caso das Sociedades Anónimas Desportivas, a apresentação de resultados positivos aos financiadores, parceiros e, principalmente, à massa adepta.
O melhor exemplo recente deste tipo de práticas ocorreu no clube do qual publicamente sou adepto – o Futebol Clube do Porto – Futebol, SAD.
Para o efeito, é relevante mencionar que o Futebol Clube do Porto – associação desportiva – detém, em cerca de 75%, uma Sociedade Anónima Desportiva (SAD) cotada em bolsa, responsável pelas transações de todo o grupo – nomeadamente a detenção dos recintos desportivos, dos passes dos jogadores, recebimento da receita de bilhética, etc (prática utilizada na maior parte dos clubes de futebol portugueses).
No âmbito de eleições para os órgãos sociais do clube, uma das principais críticas feitas pela oposição à atual administração cifra-se nos capitais próprios (património líquido, dado pela diferença entre todos os bens e direitos por todas as obrigações) negativos da SAD. A 30 de junho de 2023 (o final do exercício contabilístico de 2023 para a SAD, já que estas apresentam as suas contas de julho a junho, condizentes com a época desportiva), a SAD portista apresentou um capital próprio negativo em 176.979.626€ – isto é, se a sociedade vendesse todos os seus bens [356 Milhões] e tentasse liquidar todas as suas dívidas [532 Milhões], ainda existiria um fosso gigante de dívida. Este capital próprio, quase inimaginável para qualquer empresa comercial, pode ser justificado através da facilidade que os clubes desportivos têm de se financiar, junto dos adeptos, através de empréstimos obrigacionistas.
Posto isto, chega-se à pergunta: o que é que as empresas podem contabilisticamente registar para aumentar o seu património líquido? A primeira resposta a esta pergunta foi prontamente respondida pelo clube azul e branco – as empresas aumentam o seu património através dos resultados positivos. No primeiro semestre do ano 2023/2024, findo em 31 de dezembro, a FCP SAD apresentou um lucro de 35.366.386 €, fruto principalmente da alienação onerosa do ativo intangível – passe do jogador Otávio Monteiro.
Para além disso, o Futebol Clube do Porto realizou uma operação de Revalorização dos seus recintos desportivos – em particular, o mais valioso deles, o Estádio do Dragão. Isto sucede graças às regras de mensuração possíveis nos ativos fixos tangíveis: as normas internacionais da contabilidade permitam que as empresas mensurem os seus ativos ao seu «deemed cost» (ao seu custo deduzido das depreciações e perdas por imparidade acumuladas – isto é, o valor pago retirado do valor do uso, que geralmente é calculado utilizando quotas duodecimais em função da vida útil dos ativos); ou ao seu justo valor, que obriga a revalorizações constantes do ativo em questão.
Desta feita, a SAD portista alterou a sua política de contabilização apenas dos recintos desportivos – que passaram de um valor escriturado de cerca de 113 Milhões de Euros para um valor superior a 278 Milhões de Euros. Esta avaliação, de acordo com as mesmas normas internacionais, é registada diretamente no capital próprio da empresa. Daqui se extrai um aumento de 132 Milhões de Euros nos capitais próprios da SAD (considerando os 35 Milhões de Euros em impostos diferidos, isto é, aumentos dos valores de imposto futuro a pagar pela SAD, no âmbito do seu Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades).
Esta operação, apesar de nada ter de ilegal, pode enquadrar-se como uma prática de cosméticas contabilísticas. Isto porque faz aumentar o património líquido de uma sociedade sem que nenhum facto patrimonial relevante tenha ocorrido. O estádio continua no mesmo sítio de sempre, com as mesmas caraterísticas de sempre, mas agora consegue cobrir mais um elemento para além dos 50.000 lugares – os 329 Milhões de Euros negativos em resultados.
Outro problema: a revalorização não é única. Dita a IAS (Norma Internacional de Contabilidade), nos seus parágrafos 31 e 34, que os ativos abrangidos pelo método da revalorização devem ser revalorizados com «suficiente regularidade» de forma que o valor do mesmo não volte a ficar desajustado, e que «a frequência das revalorizações depende das alterações nos justos valores dos ativos fixos tangíveis que estão a ser revalorizados».
Ora, de acordo com o Relatório Intercalar do FC Porto, a avaliação dos recintos desportivos foi efetuada tendo em consideração as entradas de dinheiro que estes geram, principalmente as que dizem respeito a bilhética, camarotes, entre outras (modelo Discounted Cash Flow). Sucede que, com uma simples mudança na competição europeia que o clube desportivo compete em relação àquela que competiu no ano desportivo em causa, os valores de receita mudam significativamente, o que teoricamente obrigaria a um ajustamento (agora negativo) nos capitais próprios – por outras palavras, se no momento da próxima revalorização, o FC Porto não estiver a disputar a Liga dos Campeões, há uma forte possibilidade do valor do Estádio do Dragão decrescer significativamente. De acordo com o mesmo relatório intercalar, a SAD tenciona promover revalorizações entre 3 a 5 anos – se é uma frequência razoável ou não, só às entidades competentes caberá decidir.
Este tipo de «cosmética contabilística» legal entronca diretamente com um dos constrangimentos à informação relevante e fiável – o balanceamento entre o custo e o benefício. Será que o custo de contratar profissionais especializados neste tipo de operações (nomeadamente o relatório de avaliação solicitado a uma auditora) compensou o benefício da administração? Regra geral, não; sendo apenas útil em cenário de eleições.
Por esta apresentação de contas ser intercalar, o FC Porto não pode antecipar ou diferir os rendimentos, devendo esses rendimentos ser reconhecidos apenas quando ocorrerem (parágrafos 37 e 38 da IAS 34). Isto porque, no seu Relatório Intercalar, o FC Porto frisou várias vezes que, não fosse a não aceitação contabilística dos 9,6 Milhões de Euros a serem recebidos pelo acesso aos oitavos da Champions, teriam mesmo chegado aos capitais próprios positivos – indiciando que o resultado do período, o excedente de revalorização e o prémio de acesso à Champions iam, de forma incrivelmente conveniente, colocar os capitais próprios do grupo acima de zero.
Apesar de este episódio ter passado despercebido, já não é a primeira vez que o Futebol Clube do Porto entra nestas operações que «escondem» o passivo: até 2014, o FC Porto não apresentava, nas suas contas, o valor do Estádio do Dragão – e, por conseguinte, o valor da dívida do Estádio. Isto sucedia porque a empresa que detém o estádio, a EuroAntas, era participada pelo clube e não pela SAD – permitindo a esta última, no momento da consolidação de contas, a não consideração deste. Este paradigma mudou em 2015, quando as regras contabilísticas alteraram – momento em que, coincidentemente, a SAD adquiriu a maior parte da EuroAntas. É, então, curioso como uma instituição que até há poucos anos não reconhecia sequer o Estádio do Dragão nas suas contas – agora até pretenda revalorizações do mesmo.
A verdade é que este tipo de cosmética acontece na maior parte das organizações, desportivas ou não, por todo o mundo. São muitos os artigos que denunciam o mesmo, seja em clubes espanhóis ou gregos. Cabe, então, às entidades fiscalizadoras determinar a (i)legalidade deste tipo de operações.