É pertinente clarificar alguns dos aspetos centrais da ética sexual da Igreja Católica, como resposta à crónica do Padre Gonçalo Almada, que contribuem para um melhor entendimento da minha tese (partilhada com um grande número de cristãos) de que a atual ética sexual da Igreja Católica está assente num princípio ético errado. Estou a fazer esta reflexão aceitando, tal como uma maioria significativa dos cristãos, que o cristianismo e os ensinamentos de Jesus Cristo são compatíveis com diferentes expressões de verdadeiro amor que se podem manifestar em relações sexuais entre casais LGBT, na aceitação da compatibilidade entre a paternidade ou maternidade responsáveis com o recurso ao preservativo e à pílula, tal como utilizados por grande parte dos casais católicos, entre outros. O recente documento “The principles of renewed sexual ethics” do Caminho Sinodal da Igreja Católica da Alemanha prova que o Padre Gonçalo está completamente equivocado quando diz na sua crónica que esta é uma mera preocupação de “não cristãos”.
Ao contrário daquilo que o Padre Gonçalo pensa, a realidade católica e cristã não é de todo “preto e branco”, e há um número bem significativo de pessoas genuinamente católicas que não se identifica com a atual ética sexual da Igreja Católica (tal como mostra o documento “The principles of renewed sexual ethics” do Sínodo sobre o qual vale a pena refletir). Negligenciar essa diversidade de opiniões legítimas dentro da Igreja é absurdo. Alguns padres têm feito um trabalho realmente evangélico no acolhimento dos casais LGBT e na tentativa de aperfeiçoar e corrigir a atual ética sexual da Igreja para se eliminar do Catecismo, por exemplo, expressões como atos sexuais “intrinsecamente desordenados” quando se fala de atos homossexuais, tal como se tem esforçado o padre jesuíta James Martin (veja-se o livro que este padre escreveu recentemente: Building a Bridge – How the Catholic Church and the LGBT Community Can Enter into a Relationship of Respect, Compassion, and Sensitivity). Infelizmente outros padres mais tradicionalistas, como parece ser o caso do Padre Gonçalo, continuam a achar que a ética sexual da Igreja não tem qualquer problema, quando na realidade tem contradições e erros graves. Tal como se diz: “o pior cego é aquele que não quer ver”.
A atual ética sexual da Igreja Católica está assente no seguinte princípio central: um ato é moralmente lícito só se com esse ato se pretende ou se visa realizar os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos (ditados por Deus). Essa pretensão pode ser ou não satisfeita. Por exemplo, tal como sublinhou bem o Padre Gonçalo, um casal estéril pode continuar com a pretensão de que no ato conjugal se realizem os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos, embora nunca consiga satisfazer essa pretensão. Mas não é por causa disso que a relação sexual num casal estéril deixa de ser um ato lícito, precisamente porque o casal estéril em consideração alegadamente pretende ou visa realizar a finalidade natural dos órgãos sexuais (ainda que não seja bem-sucedido nesse fito). Contudo, de acordo com a Igreja Católica, a prática homossexual não é moralmente lícita, dado que num casal homossexual não há de todo essa pretensão de se realizar os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos sexuais. O mesmo sucede, segundo a ética da Igreja Católica, com o sexo oral, anal, masturbação, o uso dos preservativos ou da pílula. Ou seja, uma vez que em tais atos não se tem qualquer pretensão de se realizar os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos, tais atos não são moralmente legítimos.
Todavia, esse princípio central da ética sexual da Igreja Católica é claramente falso e tem óbvios contraexemplos. Recorde-se que esse princípio central tem uma estrutura lógica condicional: se um ato é moralmente lícito, então com esse ato pretende-se ou visa-se realizar os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos. Ou seja, a pretensão de realizar os propósitos ou funções naturais é uma condição necessária, embora não suficiente, para um ato ser moralmente lícito. Ora, tal como nos ensinam os manuais de lógica, uma condicional é falsa se o valor de verdade do antecedente é verdadeiro e o valor de verdade do consequente é falso. Deste modo, o princípio central da ética sexual da Igreja Católica é falso na medida em que há atos moralmente lícitos e, ao mesmo tempo, não se pretende ou visa realizar com tais atos os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos. E que casos são esses?
Na minha última crónica apresentei alguns exemplos. Vale a pena clarificar alguns deles. Por exemplo, eu piscar um olha à minha esposa, ou “fazer-lhe olhinhos”, é moralmente legítimo, mas com esse ato isolado não tenho a pretensão de realizar o propósito natural dos olhos (isto é, o propósito de ver ou percecionar objetos). Do mesmo modo, estalar os meus dedos para fazer música é moralmente legítimo, mas com esse ato não tenho a pretensão de realizar o propósito natural dos dedos (isto é, o propósito de pegar em coisas). De igual forma, é moralmente legítimo que um casal homossexual tenha relações sexuais amando-se com todo o coração e toda alma, mesmo que com esse ato não tenham a pretensão de realizar algum propósito natural dos órgãos sexuais (tal como, o propósito da reprodução). Pela mesma razão, é moralmente legítimo um casal recorrer ao preservativo ou à pílula, dado que não há nada de intrinsecamente errado com a contraceção artificial, ainda que com esse ato não tenham a pretensão de realizar algum propósito natural dos órgãos sexuais (tal como, a finalidade da reprodução). Portanto, com todas estas ilustrações constata-se que a proposição condicional em avaliação (ou seja, o princípio central da ética sexual da Igreja Católica) é falsa e, por isso, a atual ética sexual da Igreja Católica que se baseia nesse princípio está de facto errada.
O Padre Gonçalo também está equivocado quando alega que a contraceção artificial (como o preservativo e pílula) é um dos “meios contraditórios” para uma paternidade e maternidade responsáveis. A contradição lógica está antes na própria doutrina católica que condena o uso da pílula e preservativos. Vejamos como. De acordo com a ética de Tomás de Aquino (veja-se Summa Theologica, Prima Secundæ Partis, q.7 a.4), a imoralidade de um ato surge de uma das seguintes fontes: ou o ato é intrinsecamente errado (não importando o que o motiva), ou o ato não é intrinsecamente errado mas é feito para um mau propósito ou intenção. Deste modo, de acordo com esta ética do Doutor Angélico, para que o uso da pílula contracetiva seja moralmente ilícita (como se advogada na Humanae Vitae), tal uso deve ser ilícito num desses dois aspetos.
Contudo, é falso que o uso da pílula seja moralmente errado em algum desses sentidos. Por um lado, não é intrinsecamente errado uma mulher tomar a pílula. Aliás, o próprio Padre Gonçalo reconhece isso quando afirma que “a Santa Sé permitiu que as religiosas que corriam perigo de ser estrupadas e não tivessem hipótese de fugir, ou evitar a violação, tomassem a pílula anticonceptiva”. Além disso, ninguém razoável pode supor que é intrinsecamente errado uma mulher tomar a pílula, por exemplo, para o seu propósito original de regularizar menstruações irregulares. Por outro lado, a intenção ou propósito, por parte de um casal, de reduzir a frequência ou número de gestações é legítima e em algumas circunstâncias até louvável. Tal como até o próprio Padre Gonçalo reconhece, é moralmente lícita a maternidade e paternidade responsáveis.
Mas assim a Humanae Vitae e o Padre Gonçalo incorrem numa flagrante contradição lógica; pois, eles estão a condenar como moralmente errado um ato (de contraceção artificial) que não é ele mesmo intrinsecamente errado, mas eles sustentam que é errado quando é feito para um fim específico, mesmo que esse fim também não seja errado em si mesmo. De um ponto de vista lógico, temos aqui uma óbvia contradição e incoerência. Ora, se temos uma contradição, então aquilo defendido pela Humanae Vitae e pelo Padre Gonçalo não pode ser racional à luz da lógica clássica e, por isso, mais uma vez a atual ética sexual da Igreja Católica está errada.
Na crónica do Padre Gonçalo parte-se da suposição de que não há evolução nos ensinamentos morais da Igreja Católica. Mas isso é claramente falacioso e temos dados históricos que mostram que pode haver evolução nos ensinamentos morais da Igreja, sendo que aquilo que outrora era considerado errado agora pode ser avaliado como correto. Por exemplo, teólogos medievais defendiam que a mulher grávida, ou que estivesse na menopausa, já não podia ter relações sexuais (veja-se Aurélio Agostinho, De Bono Conjugali, 24, 32). No entanto, a teologia moral católica foi evoluindo para a posição de que tais atos afinal são lícitos. Ora, se no passado existiram evoluções na teologia moral sexual católica, também pode haver agora evoluções nesse sentido. A doutrina e tradição da Igreja não é estática, mas bem dinâmica.