Temos de falar sobre Simonetta Luz Afonso. Dedicou-se ao estudo, conservação, e valorização do património cultural português; dirigiu o Instituto Português de Museus, responsável pela rede de trinta museus nacionais; dirigiu o Palácio de Sintra e o Palácio da Pena; organizou, nos anos 80 e 90, os primeiros cursos de conservação e restauro que apareceram em Portugal. Ainda hoje, é frequentemente convidada como conferencista para falar de património e turismo, ligando estas duas áreas, como tantas vezes nos esquecemos de fazer, e como é importante se quisermos subir uns centímetros o estrato económico e cultural dos nossos turistas. Foi também presidente do Instituto Camões, dedicado à promoção e ensino da língua portuguesa. Tem parcerias com várias universidades, e com as melhores universidades em todo o mundo. Por este percurso luminoso, o governo atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Cultural; pelas mesmas razões, e também por ser deputada municipal (na bancada do PS), a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou por unanimidade um Voto de Saudação a Simonetta Luz Afonso. Uma homenagem exemplar e justa. Vejamos o que ela nos ensina sobre cultura.
No fundo, Simonetta Luz Afonso concentrou o percurso profissional em dois grandes assuntos, o património e a língua. Aproveito e peço penhoradamente, se entre responsáveis levianos ainda houver quem dê valor ao que ela diz, que Simonetta Luz Afonso exerça pressão para que alguém produza um dicionário universal de língua portuguesa. Um dicionário que inclua todas as palavras usadas em todos os países que falam português, porque não falam um português igual, e no Brasil, em Angola, em Timor ou em São Tomé e Príncipe há palavras que só se ouvem ali, e os outros não conhecem nem entendem. Este dicionário não existe. O Instituto Camões bem podia reservar para ele uma verba.
Mas outro aspecto importante, talvez o mais revelador de todos, é a comparação com outras homenagens que se têm feito a pessoas da cultura pelos motivos errados, unicamente assentes no reconhecimento ao antifascismo. Sempre o mesmo reconhecimento estremecido ao antifascismo, uma, e outra, e outra glória, repetida e previsível como um realejo. Em vez de se valorizar as artes e a cultura pelo mérito, pela própria qualidade da produção, elas são valorizadas pelo comportamento político dos autores. Não quer dizer que o comportamento deles está forçosamente errado; as artes é que não têm de sofrer com isso. Temos homenageado medíocres espectaculares em matéria de arte, cultura, inteligência, conhecimento, ou civilização, com o consequente abandono das pessoas que merecem ser reconhecidas. Se nivelamos tudo por igual, se o mérito se torna indiferente, como distinguimos as pessoas com valor? Há uma diferença descomunal entre Simonetta Luz Afonso e a desonrosa maioria das pessoas em cujos pescoços a Pátria tem vindo a pendurar medalhas e comendas.
E compreende-se porquê. Simonetta Luz Afonso tem características pessoais e cerebrais que ajudam a explicar o grau de respeitabilidade do trabalho dela. Não é ocioso mencionar que é uma pessoa educadíssima, de uma suavidade espantosa na maneira como ouve, presta atenção, e responde às posições e atavismos dos outros. Mais do que isso, Simonetta Luz Afonso interessa-se pelo que pensa e diz o interlocutor. Raras vezes conheci alguém que levasse esta atitude ao modo sistemático e curioso que é indissociável dela. Simonetta Luz Afonso acredita que no mundo de cada pessoa há qualquer coisa que ela pode aproveitar, um pedacinho de conhecimento que lhe serve para aperfeiçoar a construção que ela tem na cabeça. Isto é próprio de um espírito especial; nem sempre leva a grandes glórias, mas é um dos traços possíveis para quem compreende que a cultura e a ciência funcionam por acumulação.
Em resumo, e para uma outra visão de cultura, tiramos daqui três constatações. Primeira: os poderes públicos devem dar prioridade ao património, em vez da produção artística. É preciso fazer escolhas, o património é uma certeza, a produção quase sempre é uma incógnita. Muitas vezes nem sequer é artística, é só reverente e panfletária. Segunda: devemos acarinhar e proteger a língua portuguesa, dos poucos bens verdadeiramente valiosos que temos, ela mesma um património. Com uma literatura rica, erudita, e variada. E devemos produzir o dicionário universal de língua portuguesa, em vez de acordos ortográficos impraticáveis e impraticados. Terceira: andamos há décadas a celebrar “artistas” com base no antifascismo, e não com base na qualidade da obra que promovem ou produzem. É uma injustiça e um desperdício de talentos.