Num momento em que o País vive eletrificado com os resultados das eleições que colocaram em causa o que foi a paisagem e a vida política dos últimos 50 anos, falar de política europeia poderá parecer um bizarria, um tema que não tem nada a ver com o nosso drama nacional. Só que falar da Europa, quando nós e mais 26 países vão decidir do futuro da sua União nas eleições previstas para Junho, é uma urgência maior, a acrescentar às urgências que nos surgem do pós 10 de Março.

Actualmente, a perspectiva de uma Europa unida parece ter deixado de merecer os favores de parte significativa dos votantes das democracias que constituem esta singular União, construída voluntariamente e sem intervenções militares. O entusiasmo e a esperança de grande número de cidadãos dirigem-se hoje de novo para os benefícios do Estado Nação, reflexo seguramente dos resultados das crises globais que nos últimos anos maltrataram o nosso continente. Sentimos estar a viver o fim de um longo ciclo político, que nos traz de novo a ideia de que a salvação deve ser procurada dentro de portas, retirando Bruxelas da equação. Só que, se esse modelo se concretizar no nosso continente, as consequências para a vida e para o futuro de cada uma das nossas sociedades serão dramáticas. Será que pretendemos voltar a parar na fronteira do Caia ou de Vilar Formoso, para mostrar passaporte e bagageira? Ou obrigar os camiões que transportam as exportações portuguesas a levar consigo devidamente preenchidos os diferentes formulários, reconhecidos e autorizados por um transitário competente após o pagamento de todos os impostos nacionais? E repetir esse processo para cada uma das fronteiras atravessadas até o destino final? Emigrar a salto à procura de emprego? Estas perspectivas merecem um esforço de reflexão, antes de nos deixarmos embarcar na música nacionalista que neste momento inflama tantos corações.

Para benefício da análise, imaginemos por um momento que estamos no centro do continente europeu dentro de um foguetão da Agência Espacial Europeia (porque não?) no qual vamos subir a alguns quilômetros de altitude. E já agora, imaginemos também que essa nave nos pode fazer retroceder no tempo cerca de dois mil anos. O que veremos lá em baixo é o enorme Império Romano, uma formidável entidade política, social, militar e econômica, que domina o mundo inteiro. Ou melhor, a metade ocidental do mundo, porque o império chinês já existia e seria comparável em tamanho e poder, mas os dois mundos não se relacionam. Esqueçamos de momento as qualidades e os defeitos do império romano, construído em décadas de invasão e de conquista militar de inúmeros povos, que lá viviam nos seus territórios de subsistência. Um Império realmente rico, sentado sobre uma importante camada de população escrava. Uma entidade política que beneficiava do produto e do imposto recolhido nos inúmeros territórios ocupados. Ao contrário das sociedades que dominou, a subsistência não era um qualificativo que se aplicava a Roma, cuja actividade económica, riqueza produzida e acumulada, apesar de desigualmente distribuída, marcava uma diferença radical com o passado da humanidade.

Como sabemos, o eterno não é aplicável nem aos homens nem às suas obras, pelo que o império romano acabou por sucumbir aos apetites e às invejas dos seus bárbaros vizinhos. O que aconteceu nos séculos que se sucederam, foi a implantação de várias comunidades territoriais, limitadas por fronteiras móveis e encabeçadas por chefes hereditários, cuja missão primeira era a conquista de espaço vital para si e para os seus súbditos, cuja esmagadora maioria tinha um estatuto semelhante aos escravos de Roma. Chefes de guerra que eram obrigados a fazer uso heroico do machado e da espada e cujas façanhas serviriam para alimentar a memória colectiva e os livros de histórias dos diferentes beligerantes.

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No entanto, a riqueza que marcou a existência do Império Romano foi perdida para todo o sempre. Os novos reinos, economicamente insignificantes e com um estilo de vida não muito superior ao que acontecia na Idade da Pedra, passaram a ser o padrão europeu. A existência da Igreja Cristã, herdada da fase final do Império Romano, dava alguma consciência continental, mantendo as possibilidades de diálogo transfronteiriço, o que não impedia a frequente eclosão de guerras, que podiam durar 7, 30 ou 100 anos. E que claro, recomeçavam na primeira oportunidade.

Mas se a Europa se anulava nos jogos de empate e de terra queimada, o mundo muçulmano, unido por uma religião concorrente, mostrava os seus trunfos: territórios a perder de vista de onde se canalizava o imposto para cosmopolitas capitais onde a riqueza não era simplesmente o dinheiro, já que artistas, poetas e cientistas, faziam a diferença face ao que se passava nos pobres reinos cristãos. Enquanto a Europa continuava estagnada na pobreza, sucessivos impérios iam florescendo e desaparecendo no oriente.

Só que um acontecimento extraordinário ocorreu no século XV, quando os portugueses quebram os limites territoriais e ganharam o controle do comércio leste oeste, que era o privilégio dos muçulmanos e no qual certas cidades italianas faziam o papel de entrepostos grossistas. Com a abertura das novas vias marítimas planetárias, o caminho estava criado para os europeus explorarem e conquistarem a África e a América, que eram o Terceiro Mundo da época. Aos navegadores portugueses e espanhóis sucederam-se os holandeses, os ingleses, os franceses e os alemães, estes últimos somente depois de no século XIX Bismarck construir na Alemanha uma economia e uma força militar comum. O sifão da riqueza global mudou de posição e tomou o destino sucessivamente de Lisboa, Madrid, Amesterdão, Londres, Paris e finalmente Berlim. As potências europeias ascendem à supremacia global e têm agora meios para fazer face ao poderio muçulmano. E graças às descobertas científicas, a Inglaterra, a França e a Alemanha, lideram uma revolução industrial que lhes dará os instrumentos de dominação planetária. Esta nova força económica das nações europeias, não anulou no entanto, a sua vocação para continuarem as guerras no continente. A formidável riqueza construída pela Europa com as suas colónias no século XIX, foi entusiasticamente calcinada nas loucuras nacionalistas das duas guerras mundiais do século XX.

Ora, é esta constatação que leva nos anos 50 do século XX alguns franceses e alemães, com os respectivos países arruinados e destruídos pelas guerras e com as colónias a desaparecerem, a procurar resolver alguns dos seus mais prementes problemas que, afinal, eram artificialmente criados pelas fronteiras. E assim tentaram encontrar soluções assumindo que as fronteiras não existiam. Num longo processo marcado por avanços e recuos e sem intervenções militares, a Europa, sem colónias, tornou-se numa potência económica, que o mundo é obrigado a ter em conta. Uma entidade onde a partilha de regras comuns, é afinal a razão da sua força.

Num mundo onde as grandes potências se agitam para manter (os EUA), recuperar (a Rússia) ou conquistar (a China) o domínio global, a Europa dispõe neste momento da força económica que julgava ser suficiente para preservar os interesses dos seus cidadãos, algo que nenhum estado nação conseguiria obter separadamente. Putin veio, no entanto, mostrar que a força económica afinal não é razão suficiente.

A existência da União Europeia é efectivamente um empecilho para as ambições de dominação global das potências militares. Daí os consistentes investimentos russos nos movimentos políticos nacionalistas, cujo objectivo é a destruição da União Europeia e onde contam com importantes sucessos. Num futuro que parece cada vez mais possível, a Alemanha governada pela AFD, a França pelo RN, a Itália por Salvini e a Espanha por Vox, teriam como corolário uma Europa de Nações, que dispensava a existência de mecanismos de gestão de problemas comuns. Seriam os políticos nacionais a encontrar isoladamente a solução para as suas dificuldades, que inevitavelmente atribuiriam à existência dos seus vizinhos. Esquecendo que esse modelo já foi testado com os resultados que se conhecem durante mais de mil e quinhentos anos. Mecanismo que convém não esquecer, funciona na base do respectivo poderio militar.

Por muito que nos custe, temos a consciência que hoje a contribuição dos navegadores portugueses e espanhóis para dar aos europeus a oportunidade de sair da estagnação e descobrir novos mundos, já não é relevante. Essa saída já não existe.