1 Ando há cerca de seis meses a escrever um livro sobre a qualidade e os perigos que se colocam à nossa democracia. Um deles é a judicialização da política outro a politização da justiça.

O caso da TAP é uma boa ilustração do primeiro perigo. Não me preocupa o desenlace da providência cautelar colocada pela Associação Comercial do Porto (ACP) junto do Supremo Tribunal Administrativo. Está suficientemente claro que se o governo invocar o interesse público  pode ultrapassar essa providência cautelar e fazer, como pretende após acordo com os privados, a injeção de capital, necessária para a sobrevivência da TAP a curto prazo, com tudo o que isso implica.

O que me preocupa é o grave precedente que isto abre. Como tenciono demonstrar neste artigo não estamos no domínio de decisões administrativas, mas de decisões políticas da responsabilidade da Assembleia da República, pelo que essa providência cautelar não só é extemporânea como não deveria ter sido admitida liminarmente pelo Supremo Tribunal Administrativo.

Vamos por partes. A decisão sobre a injeção de capital é uma decisão política e que ainda não foi tomada! Existe uma norma da Proposta de Lei de Alteração ao OE2020, que ainda está na fase da especialidade e não foi votada que diz o seguinte: “ O Governo fica autorizado, através do membro do Governo responsável pela área das finanças, a proceder a alterações orçamentais resultantes de operações não previstas no orçamento inicial de entidades públicas e destinadas ao financiamento do défice de exploração, constituído ou agravado pelo impacto negativo na liquidez das empresas das medidas excecionais adotadas pela República Portuguesa decorrentes da situação de pandemia da doença Covid-19, bem como de outras operações, nos termos a definir por despacho dos membros do Governo responsáveis pela área das finanças e pela respetiva área setorial.” Este artigo aplica-se às empresas públicas e é um artigo genérico que também se aplica à TAP. Se este artigo que ainda foi votado for chumbado não há injeção de capital. Há assim uma razão essencial pela qual a providência cautelar não devera ter sido aceite pelo Supremo Tribunal Administrativo. Estamos no domínio de uma norma do OE, em apreciação política parlamentar. O OE é uma lei de valor reforçado, e a Lei Constitucional é clara sobre as competências dos diferentes órgãos de soberania. Neste domínio, cabe ao Tribunal Constitucional eventuais apreciações de inconstitucionalidade, ex ante ou ex post e ao governo executar o OE aprovado. Não vejo, nesta fase do processo político papel que possa ser desempenhado pelo STA. Aceitar, mesmo que liminarmente, providências cautelares relativamente a ações que o governo poderá tomar se vierem a ser aprovadas certas normas do Orçamento de Estado, é colocar no campo jurídico, aquilo que está na esfera política e tem um nome: judicialização da política!

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Imagine-se o que seria, em processo orçamental, abrir a caixa de pandora em que qualquer associação comercial, industrial, ou uma grande empresa, colocava processos à Administração, mesmo antes de esta estar habilitada a tomar decisões administrativas (o que é o caso). Aquilo que descrevo no meu livro – a maior conflitualidade e complexidade de todo o processo orçamental que já existe – seria levada a um extremo.

A Associação Comercial do Porto no seu requerimento da providência cautelar deveria ter cumprido todo um conjunto de requisitos que o CPTA prevê (artigos 114 e 116). Tendo sido admitida liminarmente, e assumindo que o STA aplicou corretamente o CPTA, só pode haver uma conclusão: a Assembleia da República (o legislador) deve alterar o CPTA neste artigo, pois há aqui uma clara violação do princípio da separação e interdependência de poderes. A questão está pois a montante da deliberação do STA sobre essa providência cautelar. Basicamente o despacho do STA parcialmente descrito na carta que a TAP endereçou à CMVM diz que o governo não pode prosseguir com a injeção de capital a menos que possa fundamentadamente justificar que o seu adiamento seria gravemente prejudicial para o interesse público.

Para demonstrar que estamos ainda no domínio da política, e não administrativa, caso António Costa, Pedro Nuno Santos e Rui Rio (pelo menos) se entendessem é ainda possível que a providência cautelar morra na praia, por falta de objeto. Basta fechar o compromisso com os privados, que o PSD substitua a sua proposta de alteração ao OE2020 sobre a injeção de capital (que, com razão, não quer passar um cheque em branco ao governo e exige informação a ser dada à AR e consideração do interesse de todo o território nacional) e que nela seja inserido o montante exacto dessa injeção. Ainda se vai a tempo para essa solução política, que colocaria a decisão onde deve estar, na esfera política e não na jurídica.

2 Acho muito positiva a participação da sociedade civil na tomada de decisão política. Vale a pena recordar que evitar um dramático erro na área da aeronáutica civil – a construção do aeroporto na OTA – foi conseguido devido à iniciativa do estudo da CIP na altura dirigida por Francisco Van Zeller. É até pena que não haja maior participação das associações empresariais no auxílio à tomada de decisão política, mas uma coisa é a participação cívica (estudos, debates, reflexões)  outra coisa é através da judicialização da política tentar levar a água ao seu moinho.

Para além de tudo o que foi dito acima, admira-me que não tenha sido realçado o caráter surreal (!) desta providência cautelar. Segundo a carta da TAP referida “a providência cautelar constante dos autos acima melhor referenciados requer, em termos gerais, a inibição do ato administrativo pelo qual o Estado Português concederá, ou autorizará que se conceda, diretamente ou através da Parpública – Participações Públicas (SGPS), S.A. ajuda financeira à Contrainteressada TAP SGPS ou diretamente à sua participada, a também Contrainteressada TAP, enquanto esta última não assegurar a distribuição equitativa e proporcional dos voos a serem operados pela TAP de e para os diversos aeroportos portugueses, assegurando no mínimo para o aeroporto do Porto 80% dos voos operados antes da pandemia de Covid-19, com a redução proporcional à operação global da TAP, entre os quais se incluem os voos de e para Newark (EUA), São Paulo, Rio de Janeiro, Madrid, Milão, Genebra, Munique, Londres, Zurique e Bruxelas.” Surreal, pois quem decide sobre voos, rotas, emprego, plano de reestruturação da empresa, etc. são os seus accionistas (Estado, privados e trabalhadores) tendo em conta os acordos desta empresa que dão poderes específicos ao nível da administração e gestão. A Associação Comercial do Porto tem toda a legitimidade para querer influenciar o plano de reestruturação da TAP, mas o poder de o fazer só lhe será dado se entrar na sua estrutura acionista. Nunca serão os tribunais a dar-lhe. Admitir providências cautelar desta natureza é enveredar por um perigoso caminho de judicialização da política onde todos perderemos. Hoje é a TAP amanhã é outra qualquer decisão política.

PS. Dado que este tópico será abordado no meu livro “A Democracia em Portugal: como evitar o seu declínio” (título provisório) qualquer contributo de constitucionalista ou especialista em direito administrativo será devidamente apreciado (ppereira@iseg.ulisboa.pt)