Por forma a evitar exercícios críticos desconexos, devo deixar claro, desde já, que o presente artigo não possui quaisquer conotações político-ideológicas. Trata-se, pelo contrário, de uma síntese pessoal de natureza ética, pelo que deverá ser acolhida com ponderação e sensatez por parte de todos os leitores, independentemente do grau de dissonância das suas convicções.
Estou certo de que nenhuma tradição, nem nenhuma forma de “arte”, deve perpetuar-se caso se verifique que a sua permanência conflitua com um desenvolvimento ético alicerçado na razão. Toda e qualquer prática que desconsidere ou viole a dignidade da vida, é um exercício grotesco que urge rejeitar com veemência.
O termo “tauromaquia”, cujo significado etimológico remete para a expressão “combate com touros”, não revela a profundidade semântica daquilo a que convencionalmente chamamos “espetáculos tauromáquicos”.
Todavia, antes de nos debruçarmos sobre esta questão, convirá esclarecer certos pressupostos biológicos que por vezes são descurados indevidamente. O touro bravo (touro de lide) é, tal como o ser humano, dotado de um sistema nervoso (central e periférico) que lhe permite experienciar o fenómeno da dor na sua elementar dimensão neuro-sensitiva.
É possível, de forma sucinta, definir a dor como uma resposta neurofisiológica a uma estimulação sensorial nociva.
Não obstante a indelével relevância do fenómeno da dor – parte integrante de qualquer debate estruturado sobre esta matéria –, não devem ser desconsiderados diversos fatores adjacentes; como qualquer mamífero, quando exposto a uma situação de potencial ameaça, o touro evidencia um aumento significativo de stress, sendo promovida uma hiperestimulação do sistema endócrino. Os primeiros sinais verificam-se na região do hipotálamo, desencadeando-se, de seguida, uma resposta que estabelece o inter-relacionamento entre a hipófise e as glândulas suprarrenais, que culmina num incremento substancial de cortisol na corrente sanguínea. Simultaneamente, a presença do medo redunda na produção abundante de epinefrina (adrenalina), o que conduz, por sua vez, ao aumento da pressão arterial e do ritmo cardíaco, à aceleração do fluxo sanguíneo e expansão dos brônquios pulmonares, à dilatação das pupilas, à ativação de mecanismos reativos no cérebro, etc. Todo este processo visa preparar o animal para uma resposta eficaz face à eventualidade do perigo.
Num evento tauromáquico tudo isto decorre, com efeito, antes da experienciação da dor física. Não se afigura insensato, nesse sentido, interrogar se tal processo é ou não representativo de uma conceção possível de sofrimento psicológico.
Em todo o caso, a resposta a esta pergunta demonstra-se subsidiária na análise que aqui se preconiza. Depois de um pequeno périplo que, segundo creio, coloca em evidência certos fatores biológicos que devem merecer a nossa atenção, proponho que nos centremos, de seguida, na dimensão histórico-cultural da tauromaquia.
Do ponto de vista historiográfico, importa perceber que esta é precedida pela tauroctonia; em síntese, a tauroctonia consiste num ato sacrificial em que é consumada a execução de um touro, tratando-se, portanto, de uma prática ritualística de oferenda aos deuses. É certo que a cronologia do nascimento da tauroctonia é incerta, porém, os registos apontam para um período que antecede em larga escala a Era Cristã.
Não é difícil percecionar a interpenetração entre tauroctonia e tauromaquia, contudo, se se quiser empreender uma indagação antropológica significativa, não é possível transcurar o seguinte: enquanto a tauroctonia assenta em pressupostos mítico-teológicos que denotam um certo sentido de veneração para com o animal, a tauromaquia, por seu turno, possui um caráter
maioritariamente lúdico. Foi, aliás, a sua ludicidade que promoveu todo o desenvolvimento da “arte” tauromáquica. Emprego o termo “arte” considerando sobretudo a génese etimológica da palavra, demarcando-me do habitual nexo de enaltecimento estético de um fenómeno particular.
Se o “espetáculo tauromáquico” pode ou não ser interpretado como uma manifestação artística – no sentido mais trivial da expressão –, é uma interrogação à qual não dedicarei qualquer esforço reflexivo. A razão explica-se com facilidade…
Quer a resposta seja afirmativa ou negativa, a sujeição premeditada de um animal a um estado de inegável consternação é, e será sempre, uma prática moralmente condenável. O reconhecimento de que a tauromaquia é inextricável da identidade cultural de um povo – como asseverou Ortega y Gasset a respeito da história do seu próprio país –, não é, no meu entender, suficiente para se considerar válida a sua prossecução.
Se este fosse o critério de aceitabilidade no tocante à ação humana, ter-se-ia verificado, no decurso da história, uma estagnação ético-axiológica intransponível. Felizmente, tal não sucedeu. O ser humano não é um ser acabado, mas sim um ser em construção, um ser cuja perfetibilidade se relaciona de forma íntima com a regência de uma praxis prudencial. Deste modo, parece-me salutar que, quer a tradição cultural quer a arte, ocupem uma posição de subalternidade face à fundamentação racional da ação humana.
Em conformidade com o raciocínio aduzido nas primeiras linhas deste texto, concluo, portanto, reiterando a firme convicção de que a dignidade da vida é inviolável e que, por conseguinte, toda e qualquer prática que desrespeite ou viole este princípio, deverá sucumbir sob a égide de um compromisso ético que nos aproxime de uma vivência mais humana (e menos antropocêntrica).