Já não fico perplexo, já não me surpreende a ausência cabal do Estado em matérias importantes e de soberania nacional e, por isto mesmo, a questão mais grave se torna. Banalizamos fazer mal. Banalizamos as falhas do Estado às pessoas e à sociedade. Tomamos como garantido que, em muitas situações, dependemos de nós e da nossa circunstância. Péssimo para todos nós, sobretudo quando nos é vendida a ideia de que o Estado existe para nos servir e proteger.
Neste preciso momento decorre um dos maiores atentados à cultura e à cultura popular do nosso país, um «fuzilamento a céu aberto» das milhares bandas filarmónicas (e não sendo tão grave, às milhares de escolas de música) por esse Portugal fora.
Foi recentemente criada uma pseudo-associação que visa, em teoria, regular as atividades culturais, nomeadamente ao que aos direitos de reprodução de partituras diz respeito. Acontece que o que transparece com as recentes notícias, que remetem tão e só para que as associações culturais que detêm as bandas filarmónicas tenham que pagar 1 euro por cópia das partituras que precisem tendo elas já comprado as partituras originais, é que essa associação, a AD EDIT, apenas deseja não regular, mas obter fundos às custas de quem tão mal passa e eleva a cultura portuguesa e de muitas freguesias e concelhos ganhando nada ou muito pouco com isso. Antes de voltar a este ponto, que é o nevrálgico de artigo de opinião, importa sempre apresentar o que é na essência uma banda filarmónica, o que elas representam e a sua contribuição para a sociedade.
Ingressei para a minha banda em 2015 e permaneço na mesma desde então. Comecei a tocar aos 13 anos na Associação Musical de Freamunde, uma banda a caminho dos 203 anos (sem de forma alguma querer estar a publicitar a mesma) e a assimilar os valores que ela (e muitas por onde toquei e vou tocando quando posso) transmitem, como os da responsabilidade, solidariedade, amizade e companheirismo. Percorri e percorro milhares de quilómetros por esse Portugal abandonado do interior norte e centro (sendo o sul exemplo paradigmático desta questão também mas que em contexto filarmónico, infelizmente, não pude vivenciar) longe dos holofotes da bolha da capital. Talvez também por causa disso tenha ganho uma sensibilidade pela coesão territorial e tenha assimilado na minha vida política uma panóplia de posições em favor de uma maior municipalização e de medidas para combater a desertificação atroz que este país, não desde agora, atravessa. Posto isto, ao longo destes anos e dos ditos quilómetros de entradas, procissões,
concertos e despedidas, pude testemunhar a resiliência de muitas populações deste país e a bonita coesão social para uma causa comum como são as festas populares e romarias, algumas delas antiquíssimas e ancestrais. Ora, sendo as bandas filarmónicas, em muitas das romarias, a maior das atrações, ao comprometer-se que as bandas tenham que comportar o custo adicional que a AD EDIT, com a conivência do Estado, quer imprimir às mesmas, as ditas terão (como já têm, pois muitas bandas abdicam da aceitação de mais festas no calendário festivo pois a partir de determinado número já não compensa financeiramente a realização das mesmas dado que terão prejuízo) que recusar as festas e essas caminharão a passos largos para a inexistência, como de resto já acontece. Sob este prisma coloco um outro cenário comparativo: alguém admitiria o fim das festas de Santo António de Lisboa ou do São João do Porto por falta de apoios? É lógico que certas festas de aldeias não trazem os benefícios económicos que as já previamente referidas, mas nem por isso as pessoas do interior são menos que as das cidades de maiores dimensões. Tudo isto para dizer que se as bandas já têm dificuldade em fazer determinados serviços, esta nova forma de taxar irá conduzir a um fosso ainda maior que, em última instância, como se já não bastasse que as bandas por si só sofram cronicamente, prejudicará ainda as festas e romarias mais pequenas.
No que concerne à missão social e de solidariedade das bandas, as mesmas impedem que muitas crianças e pessoas em risco de exclusão social, passem para essa condição em definitivo. Tão simples quanto isto. A missão passa, em boa parte, por construir uma janela de oportunidade para muita gente desfavorecida e sem rumo à descoberta de uma chance de singrar na vida que, por fruto (em muitos casos) da condição geográfica e sócio-económica, atiram essas pessoas para as posições de vulnerabilidade. A realidade empírica, em amiúde, prende-se com uma escolaridade de música a custos muito baixos (e até mesmo gratuita), providenciada pelas bandas, que poderá estar comprometida para essas pessoas devido à falta de condições financeiras que as associações já atravessam e que se agravam devido à falta de noção e de terreno de certos agentes.
Neste seguimento, e no que respeito diz à valorização e potencialização dos territórios (sobretudo, insistindo, no interior) as bandas representam um papel de exorbitante importância. Em territórios de difícil acesso e longe das pequenas e grandes metrópoles, a dinamização da cultura é escassa e os orçamentos locais demasiado baixos para suportar maiores «aventuras». Ou seja, se não são as bandas filarmónicas quem irá
espalhar o vasto reportório que a história nos deixou e ainda nos deixa? Quem dá a apresentar as protuberantes obras como a 1812 de Tchaikovsky, a Tannhauser de Wagner, a Rienzi, o Barbeiro de Sevilha de Rossini, entre outras milhares, nesses locais de forma gratuita ou a custos controlados. Essas populações são tão dignas como as que têm facilidade no acesso.
Voltando ao ponto principal – e continuando o raciocínio do terceiro parágrafo – não tem o mínimo cabimento cobrar-se 1 euro por cópia de partituras originais já adquiridas. Não tem. É claro que os proprietários intelectuais das obras têm e devem ser remunerados devidamente pelo seu trabalho. É lógico e não é isso que está em causa. Está em causa sim o facto de que se uma banda já adquiriu e pagou pelos direitos da obra original não deve ter que pagar pelas impressões (que são para usufruto da banda e não para uma espécie de «contrabando» em conluio com outras que não pagaram, porque sobre este ponto em específico também devemos ser justos: se desejamos algo que é trabalho de outrem, devemos pagar o devido). Impressões essas que servem para aspetos muito básicos como por exemplo o uso em procissões ou desfiles de rua em que os papéis têm que ser transportados recorrentemente e que facilmente, por vicissitudes óbvias, podem ser danificados. Mas neste caso em concreto podemos também abordar o caso das escolas de música, frequentadas maioritariamente por crianças. Se uma criança, pela razão óbvia de ser criança, perder as partituras, o professor da disciplina tê-las-á que repor. Deverá a escola de música pagar por cada criança que não tenha os papéis? Tenho plena noção de que se tratam de exemplos corriqueiros mas são os exemplos da «realidade real» (penso que a mensagem passa com o pleonasmo) do quotidiano daquelas associações e escolas. Por vezes podemos fazer esquemas muito elaborados de como se passarão as coisas, mas basta sair da bolha de alguma elite cultural e colocar os pés ao caminho para auscultar estas realidades. Se, por outro lado, o argumento for o da lei, mais concretamente a alínea a) do n.º 2 do artigo 75.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, então que se crie um estatuto especial para contextos vulneráveis como o das bandas e que se isente do valor estipulado. Mais, se o argumento for de que noutros países existem associações semelhantes à AD EDIT e com o mesmo propósito, meus caros, sejamos sérios e estudemos a realidade das coisas: em países como a Espanha e a Itália cuja realidade filarmónica é idêntica à portuguesa em termos de trabalho, as coisas mudam se abordarmos o tratamento e o encarar ao nível dos apoios. Nesses países as bandas são maioritariamente municipais e com subsidiação específica (ou isenção) para
os pagamentos de direitos e de partituras, ao passo de que cá, como acontece com o setor cultural em geral, o comum é subsidiar-se com «migalhas».
De acordo com as tabelas previstas pela AD EDIT sobre tarifários gerais, uma banda com um número compreendido com, por exemplo, 2 a 20 elementos terá que pagar ao ano 600 euros e uma banda com um número de elementos superior a 61 elementos terá que começar a pagar 1800 euros ao ano (a minha insere-se neste último caso). Para se ter uma noção, com esses montantes, seria possível pagar-se o transporte para mais serviços ou investir-se num novo instrumento musical mais dispendioso. Se uma banda por vezes abdica do devorante mencionado, terá lógica despender os ditos montantes para um capricho como aquele que a AD EDIT quer imprimir?
Este tipo de Bandas e associações, à semelhança das recreativas e associações de outras tipologias vivem, como disse, de míseras subsidiações, do voluntariado (como cantar as janeiras que eu próprio faço todos os anos) dos sócios e dos patrocinadores, na sua maioria locais e provenientes de micro, pequenas e médias empresas (o mecenato, por exemplo, podia funcionar de uma maneira bem mais robusta). É um exemplo crasso de uma rara coesão social que também poderá estar em risco, pois se deixam de haver bandas, muitas dessas empresas, que são o motor da economia local, deixarão de ter um veículo muito importante de promoção do seu setor.
Em jeito de conclusão, espero genuinamente ter conseguido sensibilizar um pouco mais para estes dois tópicos: por um lado mostrar a importância das bandas filarmónicas e das associações, e por outro mostrar que o que poderá vir a ser aprovado colocará em causa a sustentabilidade de muitas das mesmas. Quero também apelar ao bom senso dos envolvidos neste ataque à cultura popular reiterando o desafio descrito num destes parágrafos para que visitem a realidade da música «amadora» e que não se deixem ficar pelos gabinetes e pelas grandes salas de espetáculos. Espero que seja um episódio quixostesco pela falta de conhecimento da realidade por parte dos envolvidos e que tenham a consciência que nem todos têm a sorte de deterem grandes patrocínios e grandes instituições (grande parte delas estatais, ou seja, pagas pelo contribuinte) a suportar e a apoiar. Para a Senhora Ministra da Cultura, pela qual nutro o maior respeito e reconhecimento, do governo do meu partido, que repense bem a filosofia desta associação. Se a mesma avançar, que repense bem todo o mapa diretivo e que prime por nomear quadros capazes, com conhecimento de causa e trabalho feito em todas as áreas da cultura.
Não deixemos as bandas e as associações locais e populares na beira do abismo!
Nota: O Observador recebeu um direito de resposta a este artigo, publicado aqui.