Confesso o sentimento de vergonha alheia quando vi os episódios da série “Perdemos, mas governamos”.
Comecemos pelo princípio. O vencedor da noite, contra todas as expectativas, foi Miguel Albuquerque e o PSD. Apesar de uma trajetória descendente, em termos de número de votos e respetiva percentagem, o PPD – como é conhecido por muitos da sua base eleitoral que se fixaram na era jardinista – venceu o seu maior teste em toda a sua história, na Madeira. O caso judicial que assombra o líder do partido fez correr muita tinta, e, sobretudo, muitos desejos de mudança. Nenhum se concretizou. Miguel Albuquerque venceu as eleições internas e, logo a seguir, as Eleições Regionais, o que fez com que a confiança política em si depositava permitisse renascer da nuvem obcessiva que pairava sobre a sua cabeça. O único senão é que a Procuradoria-Geral da República não vai a votos.
Miguel Albuquerque fez o pleno neste ano de 2024. Ganhou as Legislativas em 10 de Março. Ganhou as Internas em 21 de Março. Ganhou as Regionais em 26 de Maio. Só falta ganhar as Europeias em 9 de Junho. Era por demais evidente que o PSD não conseguiria segurar a votação alcançada em eleições anteriores; ainda assim a “penalização” do eleitor ficou aquém daquilo que, previamente, se anunciava. O PSD, findados 48 anos desde o início da sua governação, e na maior prova desde a sua existência, na RAM, sobreviveu e saiu-se vitorioso, ao contrário de todos os restantes que auguravam a sua trágica queda.
Um deles, a propósito, era o Partido Socialista – esse sim, muito aquém daquilo que se especulava vir a conseguir. A liderança do Partido Socialista fica estrondosamente frágil, numa derrota que simboliza um peso superior à soma de todas as derrotas até então arrecadadas, cercada pela pressão interna que exigia um resultado significativamente superior. “Apesar do pior resultado de sempre do PSD, o PS não teve o seu melhor resultado de sempre” – estas palavras não são minhas, são de Carlos Pereira. As dissidências de Carlos Pereira – deputado à AR – com a atual direção do PS-M não são recentes, nem tão pouco desconhecidas, mas parece que Pereira exercita sobre si a capacidade política que Paulo Cafofo não foi capaz de demonstrar na noite das eleições, por mais que não seja ter reconhecido a derrota.
Uma derrota espinhosa, ficticiamente interiorizada, que rapidamente se transformou numa tentativa de alternância, lunática – diga-se –, juntamente com um epifenómeno chamado JPP. O Partido Socialista, neste momento, luta por uma afirmação enquanto alternativa que se tem vindo a demonstrar, aos olhos do eleitorado, uma autêntica farsa. Perante esta realidade, a única bóia de salvação que sobrou a Cafôfo foi aliar-se àqueles que rezam pela extinção do PS – é triste, mas o desespero tem destas coisas.
O Partido Juntos Pelo Povo surgiu de desavenças internas no Partido Socialista e, nestas eleições, alcançou o seu melhor resultado de sempre – coisa que o PS não foi capaz de acautelar. Ainda assim, parece que o que é dito e tido como certeza em campanha eleitoral passa fugazmente ao esquecimento – e, infelizmente, é transversal a (quase) todos os partidos.
Élvio Sousa (líder do JPP), na campanha eleitoral, hesitava na resposta à simples pergunta: “prefere entendimentos com o PS ou com o PSD?”. A resposta, para não mais variar, foi popular: “venha o diabo e escolha”. Parece que veio e, a correr entre astros e satélites, o diabo escolheu, o PS. Questiono-me sempre se será aquele diabo satânico de Passos Coelho tantas vezes invocado pelo PS?
“De um partido anti-sistema nada se pode esperar” – dizia o PS sobre o Chega. Digo eu, hoje, sobre o JPP.
Vamos a factos, já que argumentos há para todos os gostos. O Partido Socialista juntamente com o JPP constituem 20 deputados na atual configuração da Assembleia Legislativa da RAM. São necessários 24 deputados para a formação de uma maioria absoluta. A sua única preocupação era alcançarem o número de deputados do PSD que, sozinho, ficaria a um deputado de diferença relativamente à junção em causa. Justificou-se esta parvoíce com aquilo que fez José Manuel Bolieiro, nos Açores em 2020, que tendo perdido as eleições acabou por formar governo.
Ora, nos Açores são precisos 29 deputados para a maioria absoluta. Na altura, José Manuel Bolieiro alcançou uma maioria com esses mesmos deputados e formou governo. Em 2015, com António Costa a situação é a mesma. Para a Assembleia da República são necessários 116 deputados para a maioria absoluta. O PS tinha 86 deputados, o BE tinha 19 deputados, a CDU tinha 17, o que perfez um total de 122 deputados – valor esse que permitia ao PS ter maioria absoluta na AR.
A questão que se coloca aqui é: o PS juntamente com o JPP configuram uma maioria absoluta, com deputados suficientes para assegurar a governação, ONDE? Simplesmente configuraria, pasme-se, uma maioria minoritária.
A condição de, quase eterna, oposição não pode servir de pretexto para contribuir com a erosão da credibilidade das instituições. Aquilo que o Partido Socialista encenou indigentemente não passou de uma insuportável teatralização incompreendida por muitos e condenada por tantos outros. A verdade é que o PS encerra em si uma série de responsabilidades, políticas e democráticas, próprias de um partido fundador da Democracia, e isso é inconciliável com o miserável espetáculo do qual Cafôfo foi o ator principal.
Na inaudita tentativa de escamotear a sua constrangedora derrota eleitoral, Paulo Cafôfo engendrou uma “geriponcha”, cujo principal objetivo passava pela corrosão da pouca credibilidade ainda existente sobre as instituições políticas e usar como bode expiatório o Sr. Representante da República por não compactuar com uma, alegadamente, perfeita simbiose que se tornara na amalgamada derrapagem da escassa dignidade moral que por ali pairava.
O PS, com este episódio, contribuiu para acentuar a arcaica descrença popular nas instituições, podendo-se tornar com isto – na visão dos eleitores – num abcesso do sistema democrático. A instituição política que é o PS merecia que os princípios e a decência se sobrepusessem à tamanha aberração que confirmou o dogmatismo que orienta, politicamente, o PS-M.
Imagine-se que a estratégia avançava e Cafôfo era indigitado Presidente do Governo Regional: o principal beneficiário seria o Juntos Pelo Povo. Apesar do voto de protesto se concentrar no JPP, e uma parte do eleitorado repelir entendimentos com os partidos do “centrão”, a estratégia que o Juntos Pelo Povo se preparava para encetar passaria, nem mais nem menos, pelo rompimento abrupto e ruidoso de um “acordo de princípios”, assim que lhes fosse favorável – o que lhes permitiria cavalgar sobre as vicissitudes do PS, equiparando-os ao PSD –, fazendo o pleno para a sublime vitimização, aliando a tudo isto o apelo à confiança de um único partido que se distingue de PS e PSD. Os caminhos estavam desenhados e a estratégia estava montada, sendo que nisto tudo só um erro foi feito. Na conferência de impressa, Élvio Sousa deixou escapar a célebre frase que desvendou a sua verdadeira intenção: “Se isto não resultar, cada um vai para sua casa. Nós não vamos casar agora.”
Estas cenas degradantes seriam um tanto melhor se Paulo Cafôfo não tivesse vincadamente personalizado estas eleições. A estratégia de campanha passou pelo incitamento à escolha do próprio Cafôfo em detrimento de Albuquerque, gritando aos sete ventos que a escolha, apenas e, só, deveria passar por votar no PS ou votar no PSD. Creio que, na lógica de pessoalização destas eleições, o povo foi claro – Cafôfo teve 28.981 votos e Albuquerque teve 49.103 votos. Será que a lógica perdeu a validade às 21 horas da noite de 26 de Maio?
A resposta é óbvia.
29.05.24