Tem dias. Mas, às vezes, o mundo parece uma prisão de alta segurança. Com a particularidade de estarmos todos em casa. O mundo “seguro” e ultra-monitorizado que a pandemia ajudou a acentuar não é um mundo muito amigo de quem pense. É um mundo onde “vence” quem melhor funciona. Por mais que esse “vencer” seja um lugar efémero. Ou descartável. Onde uma “vitória” se esgota, muitas vezes, no dia seguinte. Perdurando o presente, desta forma, sobre a lonjura do tempo, um mundo assim corre o risco de se tornar, vezes demais, num lugar sem passado nem futuro.

Talvez (vendo bem) até nem seja por isso. Mas, num mundo onde o tempo parece um bem que nos foge e escasseia, há uma frase que tenho escutado, com insistência, dia após dia, que, por mais que possa ter os condimentos certos para ser razoável, me “magoa”; um bocadinho. Regra geral, porque ela não me chega de forma soalheira. É por isso que, a propósito seja do que for, quando alguém me retorque: “Um dia de cada vez!…”, sinto que o entusiasmo, em mim, se assusta e se refreia. Como se estivesse a viver depressa demais. Ora, é verdade que a vida não se ama com pressa. Mas, habitualmente — então quando isso nos chega na primeira pessoa — “um dia de cada vez” nem sempre representa uma experiência de clarividência. Ou um assomo de sabedoria. Ou, mesmo, um testemunho de superação. Antes traz consigo alguma censura; que nos estraga os planos. Uma nesga de “ralhete”. E, sobretudo, uma prova de resignação. Como se — tantas vezes na sequência duma doença, por exemplo — as pessoas não pudessem ter, sobretudo, futuro. Ou como se ele fosse o dia de hoje. “Este momento”. Na sua mais completa e absoluta planura. E nada mais.

A verdade é que uma frase como esta – que poderia querer dizer que não ganhamos por aí além se formos gananciosos, impulsivos, impacientes ou pouco perseverantes – quando lhe apanhamos o tom, nunca nos recomenda à “indignação”. “Seca-nos”. E constrange-nos. Faz-nos respirar fundo e engolir em seco. Como se não tivéssemos o direito de a contrariar. Ou fosse quase desumano fazê-lo. Ela tem um travo de: “Deixem-se de entusiasmos. Desçam à Terra!” E nós, como meninos ajuizados, não deixamos de o fazer.

Mas como é que é possível que aceitemos viver um único dia de cada vez? Nós temos muitas vidas! Uma vida pessoal. Uma vida amorosa (onde convivem — por vezes, num reboliço — todos os amores que fazem parte do nosso crescimento). Uma vida familiar (plural e ruidosa, preenchida de pessoas contraditórias). Uma vida laboral (onde existem muitos desafios e muitas pessoas, que chocam, entre si, várias vezes). Uma vida de amizades (com amigos próximos, amigos distantes, candidatos a amigos, “desamigos” e etc.). Uma vida como pais. Um vida de filhos e como irmãos. Uma vida interior. Uma vida de sonhos. Uma vida de projectos. Uma vida de cicatrizes e de mazelas. E não sei mais quantas vidas, que concorrem todas, umas com as outras. E que se contrariam, muitas vezes. Todos os dias! Vidas que se misturam. Que se repuxam. Que, momentaneamente, se alinham. Mas que, do nada, também cortam relações. Nós somos sempre — de todas as vezes! — vários passados, múltiplos presentes e inúmeros futuros. Em cada dia cruzam-se todos os dias. E se é assim, então, como se pode tudo isso “desemaranhar”, a ponto de alguém, no seu supremo bom senso, nos imaginar, passo a passo, a viver um dia de cada vez? Como se pode desejar, vivendo um dia de cada vez, quando o desejo é o futuro no presente? Ou apanhar uma paixão, como quem cavalga uma onda, ao ritmo de “um dia de cada vez”, quando ela rasga avenidas no tempo e o transforma numa eternidade, deliciosamente, presente? De que que forma se pode ter esperança, vivendo um dia de cada vez, se a esperança é uma forma de ir ao passado resgatar o futuro? Ou de que modo seria possível amarmos, por exemplo, vivendo um dia de cada vez, quando amar contém em si todos os dias do mundo?

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É verdade que um mundo — que, por vezes, reclama por alta segurança — parece ter-se tornado num lugar em que nos “obrigam” a viver um dia de cada vez. Sempre dependentes dos “últimos números” para nos darem o direito de sermos livres; algures, num dia depois de amanhã. Mas será que o mundo não vê para além do hoje? Será um mundo que reage, ao dia, um mundo seguro? E será um mundo que nos assoberba com os perigos, mas que não nos fala da esperança do depois de amanhã, um mundo que mereça a nossa confiança? Nós não precisamos de saber que o amanhã está para chegar! (O “amanhã será melhor” nem sempre é um exercício de esperança. É, muitas vezes, uma forma de nos sugerirem que vistamos “a camisola” da resignação, e que esperemos que a vida decida. Tudo ao contrário da escolhas que precisamos de fazer para que ela não mande demais em nós.) Ora, nós precisamos, é de saber do depois de amanhã! Precisamos de sentir que o melhor do mundo é o futuro. Por outras palavras: não será um mundo onde o futuro parece tingido por tons incertos, e onde se vive um dia de cada vez, um bocadinho inóspito (como Marte, por exemplo!) — a ponto de não se conseguir pensar e nem sequer respirar — um mundo que, legitimamente, não queiramos para nós?

Quando, um dia, aterrei na Baía, a minha amiga Sónia — tentando explicar-me a relação dos baianos com o tempo — recordou-me que, naquele lugar, nunca se guarda para amanhã o que se pode fazer… depois de amanhã. A ideia, num primeiro momento, pareceu-me que não passaria de um elogio da preguiça. Mas, depois, já em Itapuã, um velho pescador ensinou-me o quanto viver a vida, com amor, exige sabedoria. E tempo! “Um dia de cada vez” na Baía, seria Viver como se não houvesse amanhã. Ou, melhor, como se o amanhã fosse tanto melhor quanto mais intensamente o hoje se vive. Viver onde caiba todo o tempo do mundo! (Viver com letra grande, portanto. Viver sem este espectro depressivo com que quase nos coagem a viver, em letras minúsculas, “um dia de cada vez”.) Eu acho que que compreendi melhor o que me tinham dito: se queres o futuro, vive o presente. Um bocadinho ao contrário do nosso: “um dia de cada vez”. Onde se subentende que o presente é o único futuro a que se tem direito.

Ora, este ideia depressiva de viver o presente como uma ilha em vez de o transformarmos numa ponte gera, por outro lado, uma gritante carência de visão sobre o depois de amanhã. E isso contamina a paixão de viver. Por exemplo: lembram-se quando, “ontem”, nos diziam que não haveria evidências de pandemia? Ou da forma como se “desaconselhava” o uso de máscara? E como, a seguir, se afirmou o contrário, com o mesmo prazo de validade temporal e com o mesmo ar depressivo de quem se importa mais com a planura do tempo do que com a sustentabilidade do que nos dá a pensar? Às vezes, são as pessoas que melhor vivem neste sombrio “um dia de cada vez” que mais evitam ver o amanhã. E que mais guardam para depois de amanhã aquilo que podem fazer hoje. (Na política — tragicamente — acontece demais.)

Por isso mesmo, ao chegarmos aqui – em plena Primavera, quando a Páscoa nos sugere as experiências de encontro que nos levem à “ressurreição” e em vésperas de voltarmos a ter o direito a “esplanar” — trata-se de não esquecermos o passado para não perderemos de vista o depois de amanhã; claro. Mas, trata-se, sobretudo, de assumirmos que o futuro (ao contrário de tudo o que, de obsceno, se passa com as vacinas) não tem reserva de patente. Ele é nosso!

Se queremos o futuro, que vivamos o presente. De forma a caber nele todo o tempo do mundo! E nunca mais neste registo, entupido por letras minúsculas, de quem vive “um dia de cada vez”. Bom amanhã!