Boaventura Sousa Santos (BSS) ainda não percebeu que a mentira é a filha bastarda da verdade. A filiação legal admite fraudes, a natural não. O parentesco irrecusável está sempre dado no corpo do pensamento: a linguagem. Para se defender dos actos de assédio sexual que lhe são imputados, BSS publicou no semanário Expresso, «uma reflexão autocrítica» e «um compromisso para o futuro», exemplares de um ponto de vista linguístico.

Em primeiro lugar, BSS define-se como um defensor dos direitos humanos em todas as esferas da sua vida: pessoal, profissional e cívica. Tudo se subordina a uma tão nobre vocação, que assim se torna motu proprio o critério único pelo qual os seus actos devem ser julgados. A pureza absoluta dessa estilização autobiográfica vai obrigá-lo a objectivar os actos de que é acusado externalizando a responsabilidade. Não se trata de um deslize ou de inadvertência. É o objectivo pretendido.

Mascarando os actos por detrás de ideologias, BSS começa com a alegação de que o machismo é um fenómeno «com profunda raízes no nosso espaço cultural». Passa pelo poder com que as gerações moldam os seus filhos e prossegue neutralizando-se a si mesmo através da pluralização («afecta-nos a todos nós nas nossas relações»). O professor catedrático inocenta-se de uma forma arcaica. Como para Adão a culpa é de Eva, e para Eva é da serpente, o mal para BSS está no «espaço cultural» e na «geração». A prova, ele mesmo a produz: todos sucumbem ao mal. A dissolução da responsabilidade individual na injustiça universal igualiza todas as condutas. Não é, pois, de estranhar que seja difícil escapar a esse determinismo que tolda o espírito mesmo a quem norteia a sua vida, e toda a sua vida, pela defesa dos direitos humanos. Preparado o cenário da desresponsabilização, BSS faz crer que a recusa. Para ele, «não se trata de justificar comportamentos passados», que, sem dizer de quem são esses comportamentos, BSS deixa subentender que seriam os dele. O que na aparência dá com uma mão tira com a outra. Trata-se tão-somente de «verificar algo que pode acontecer». Já não há subentendidos e prescinde-se deliberadamente do «nós». Já não há sequer sujeitos, há um processo reificado, contingente que pode redundar em acções pouco construtivas – a litotes é de ampla serventia. O próprio determinismo tornou-se indeterminado, grassa a irracionalidade em todo o seu esplendor. Depois de consumada linguisticamente a desfiguração do problema, agora irreconhecível como tal, então, e só então, BSS «reconhece»; mas reconhece apenas que «em determinados momentos posso ter sido protagonista de alguns desses comportamentos». Se dúvidas houvesse, estão esclarecidas. BSS destrói sem pudor o comportamento, que por definição supõe um sujeito agente, ao transformá-lo numa decorrência cega de «algo que pode acontecer». Por outras palavras, os comportamentos de BSS não são os comportamentos de BSS, aliás, nem sequer são comportamentos, e se fossem, ele ter-se-ia limitado a protagonizá-los. Mas BSS escrupuliza; à cautela, tudo vai precedido de «um posso ter sido». Como quem não quer a coisa, BSS embrenha-se noite adentro, nela todos os gatos serão pardos.

Depois de ter assegurado a sua inocência com o zelo do crente angustiado pela certitudo salutis, BSS tem finalmente uma palavra para lamentar que «algumas pessoas possam ter sofrido ou sentido desconforto» por causa dos seus comportamentos, que, sabe-se já, nem sequer são bem seus. Convinha que BSS precisasse sem margem para dúvidas quais são os comportamentos que pode ter protagonizado pelos quais «lhes deve uma retratação». Dadas as descrições feitas pelas alegadas vítimas, a sua afirmação de que o seu «reconhecimento de modo algum implica que eu assuma a prática de actos graves que me têm vindo a ser imputados» é excêntrica.

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No seu texto, tudo leva a crer, mas nunca nada é dito, que os seus actos foram, ou melhor, podem ter sido, meros pecadilhos. Ainda assim, num assomo de estranha valentia que mata mosquitos com a artilharia pesada dos princípios, BSS dá a sua palavra de que continuará a dedicar todos os seus «esforços, para aprofundar a promoção de uma cultura institucional e interpessoal de prevenção, detecção, condenação e eliminação de comportamentos machistas nas suas mais diversas manifestações». As pessoas banais emendar-se-iam.

Mas BSS não é uma pessoa banal. «Os intelectuais que, como eu, reconheceram há muito que uma das dimensões da dominação nas sociedades contemporâneas é o heteropatriarcado, têm uma obrigação especial de vigilância, não só epistemológica como também prática, emocional e interpessoal, de não cair em contradição entre o que defendem teoricamente e as suas actuações concretas nas relações interpessoais e institucionais.» Regressa o rebanho, BSS volta a esconder-se. Uma vez que se podem introduzir falhas na correção teórica da prática, logo aparece o colectivo de que BSS é apenas um elemento sem real importância. Mas, havendo ganhos, há também uma leitura no outro sentido da expressão «os intelectuais que, como eu»; BSS eleva-se, nessas mesmas palavras, a bitola da intelectualidade. Custa-lhe tornar-se parte da paisagem assim por tão pouco.

O passo seguinte é o da interligação de todas as causas. Os intelectuais que, como ele, sempre defenderam que os «modos de dominação moderna principais são, além do heteropatriarcado, o capitalismo e o colonialismo (racialização dos corpos e das culturas ou de práticas que se desviam da cultura eurocêntrica dominante)» devem procurar «uma articulação entre a cultura e as lutas feministas, por um lado, e a cultura e as lutas anticapitalistas e anticolonialistas, por outro». Como um adolescente no seu quarto desarrumado, BSS é tomado de entusiasmo pelo vago, pelo informe – e pela preguiça. Mas menos inocentemente. Só depois de confundir todas as coisas de modo a que nenhuma delas seja identificável, BSS ensaia um mea culpa. Usa a multiplicidade das causas para tornar a sua acção relativa à multiplicidade de princípios e assim liquefazer a acusação concreta de que é alvo, como uma lagartixa que se liberta da cauda para engodar o predador. Ele mesmo refere os seus actos de eventual fraqueza a «eixos de dominação» – o origami linguístico é uma segunda natureza do seu texto. Assume, pois, sem tibiezas o compromisso de «ser cada vez mais vigilante»; mas não se trata de um compromisso novo, é antes a «consolidação do compromisso», consubstancial à sua vida, por «maturação e aprendizagem». Toda uma vida não lhe chegou. Coisas destas só são possíveis a intelectuais que, como ele, não querendo dizer nada, dizem tudo.