A 1 de julho de 1996 Portugal assistiu à criação do Rendimento Mínimo Garantido (RMG), atualmente e desde 2003 com uma nova designação de Rendimento Social de Inserção. O RMG foi introduzido em Portugal pela Lei 19/96 e decorre da recomendação da Comissão Europeia de 1992 no sentido de serem criadas medidas de rendimento mínimo nas políticas sociais de todos os Estadosmembros, como forma de combate à exclusão social. Ao promover a universalidade do direito a mínimos sociais, o RMG veio romper quer com os princípios, quer com as metodologias até então seguidas no modelo social português (baseado, essencialmente, em prestações dos regimes contributivos) dando origem a uma nova conceção de políticas ativas de inserção.

O RMG era uma medida estabelecida no âmbito do sistema de proteção social de cidadania e do subsistema de solidariedade, assentando em dois pilares básicos: uma prestação sujeita a condição de recursos e um programa de inserção social. Adicionalmente, o RMG apostava também na ideia de associar a inserção social e profissional do beneficiário a uma lógica de responsabilidade coletiva, entreajuda e parceria, através da criação de Comissões Locais de Acompanhamento.

Em 2003, quando o RMG foi revogado e substituído pelo Rendimento Social de Inserção (RSI), os princípios básicos mantiveramse, sendo que as principais mudanças visaram o nível da contabilização dos rendimentos, as condições de elegibilidade e o conceito de agregado familiar. Procurouse também reforçar o envolvimento da sociedade civil, através da celebração de protocolos com os Parceiros Sociais e a substituição das Comissões Locais de Acompanhamento por Núcleos Locais de Inserção. Mas será que isso realmente aconteceu?

O RSI é constituído hoje por uma prestação financeira consagrada como um direito universal, que deveria ser transitório, estruturado em volta de critérios estabelecidos, por um programa de inserção operacionalizado num contrato entre os beneficiários e o Estado. A elaboração do citado contrato devia contar com a participação de diferentes organismos que protocolam o programa de inserção e em que ambas as partes aceitam levar a cabo um conjunto de ações necessárias para a integração social, profissional e comunitária gradual da família ou beneficiário. Mas hoje, na generalidade dos casos, o RSI é um contrato entre um gestor do processo social e um beneficiário, uma dupla só e mal-acompanhada. O técnico sem recursos e o beneficiário remetido a uma candidatura administrativa. Se corre bem, uma salva de palmas para a medida política, quando corre mal, ou o técnico é um incompetente ou o beneficiário rotulado de “parasita do Estado Social”. O Estado, esse raramente é chamado a prestar contas. Entretanto, ficamos entretidos a discutir o estigma e preconceito em torno da medida e dos beneficiários, esquecendo que os abusadores, preguiçosos e os fraudulentos só têm espaço de existência por falta de controlo e supervisão da execução da medida (RSI). Tal controlo e fiscalização deveriam ser tão prioritários quanto a concessão do apoio financeiro.

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A medida do RSI ao longo da sua implementação perdeu a sua notoriedade de política ativa, assumindo hoje um mero papel paliativo de acesso a recursos financeiros. Este estado de coisas fundamenta-se na ausência de um verdadeiro empenhamento por parte das entidades públicas (IEFP, Ministério da Saúde, Instituto de Segurança Social) que deveriam ser ativamente intervenientes no processo, mas que hoje se remetem a uma mera formalização/homologação de um plano de inserção elaborado pelo gestor do processo com a “colaboração” do beneficiário. Igualmente, os recursos materiais no plano da formação e emprego carecem de adequação face às competências dos beneficiários.

O RSI é uma medida da política social que se transformou na atualidade num processo burocrático. Os técnicos gestores do processo são pressionados para cumprirem prazos e processos legais que a Lei do RSI determina, deixam por isso de ter tempo efetivo para o acompanhamento social, por estarem completamente assoberbados com a execução de atos meramente administrativos. Casos reais são-nos descritos como uma aventura de sorte e azar com o funcionário que vamos encontrar num qualquer balcão de um organismo público. Ao beneficiário do RSI é solicitado uma inscrição em Centro de Emprego ou em alternativa, por razões de doença, deve apresentar um Certificado de Incapacidade Temporária para o Trabalho (baixa médica). Aqui, começa o “filme”. Alguns médicos entendem que não devem certificar esta incapacidade, uma vez que ela destina-se a quem se encontra a trabalhar e os beneficiários de RSI não estão, na sua maioria, efetivamente a exercer atividade profissional. Em algumas situações o IEFP revela resistências em inscrever o beneficiário, uma vez que o mesmo informa ter patologias que o incapacitam de exercer atividade profissional. Nesta roda viva do jogo do empurra entre organismos públicos ficou amarrada a tão acalmada política de inserção ativa.

Caro(a) leitor(a) o cenário pode ainda ser mais aterrador quando o candidato a beneficiário do RSI tem um elemento na família que recebe uma Prestação Social para a Inclusão ou uma Pensão de Invalidez, pois o processo de candidatura exige a apresentação de um certificado Multiusos que ateste a sua incapacidade e nos tempos de hoje adquirir tal certificado é uma “Batalha de Golias”.

“Afinal, ainda me falta um papel diz a Dona Rita que já foi ao centro de emprego duas vezes, à escola fui ontem, aqui tem o comprovativo da matrícula da menina, agora só me falta rezar que algum médico no Centro de Saúde me passe o certificado de incapacidade temporária do meu filho”. O técnico gestor do acompanhamento social desespera: os processos ganham volume e pó na sua secretária, a pressão para cumprir prazos não o larga e o número de casos não pára de aumentar. Em maio deste ano os dados disponibilizados pela Segurança Social indicavam-nos que beneficiavam de RSI 217.973 pessoas, mais 18 mil pessoas quando comparados com os dados de 2020.

Na “arena burocrática” assistimos a técnicos de acompanhamento social que sem tempo nem meios para um efetivo apoio aos beneficiários desesperam para organizar o “processo administrativo” do RSI. Técnicos exaustos e beneficiários esquecidos.

Assim, no que respeita ao RSI e ao seu efetivo impacto na erradicação das situações de pobreza, e na promoção dos processos de integração dos beneficiários identificamos uma ausência de vontade dos decisores políticos em avaliar e desenvolver estudos sobre a medida que indiquem: quantas pessoas beneficiárias do RSI se autonomizaram da medida e quanto tempo cada beneficiário auferiu do RSI.

Importa salientar que desde a extinção da Comissão Nacional do Rendimento Social de Inserção (CNRSI), em 2012, a monitorização regular da medida deixou se realizar, não tendo desde 2011 sido produzidos novos relatórios de avaliação da mesma, embora se possa analisar que os produzidos até essa data pelo Instituto da Segurança Social, apenas nos forneciam indicadores meramente descritivos e incluíam dados como o número total de beneficiários, montantes médios fornecidos pela componente do investimento, número de prestações que chegaram ao fim e respetivas razões. Desconheço a prática de realização de estudos do impacto do RSI na promoção da integração social dos seus beneficiários.

Encontramos na literatura alguns estudos produzidos, mas que não nos dão o retrato do impacto da medida na erradicação das situações de pobreza. Permitem-nos o acesso ao perfil do beneficiário, aos programas de que beneficiou, dão-nos os outputs da medida, mas não nos apresentam uma análise dos efeitos concretos que a mesma produziu na vida dos beneficiários. Alguns destes estudos recomendam:

  • A realização de uma avaliação do impacto da medida, em particular incidindo sobre a sua eficácia e eficiência no que diz respeito à pobreza;
  • Um incentivo no apoio a medidas para a integração profissional e a respetiva manutenção do posto de trabalho;
  • Uma avaliação face aos resultados reais das iniciativas desenvolvidas no âmbito da medida;
  • A melhoria da qualidade dos serviços de emprego públicos quanto à sua capacidade para promover percursos consistentes de integração laboral e o reforço da colaboração entre os serviços sociais e de saúde.

Seria, pois, pertinente que os compromissos assumidos pelo nosso Estado com a União Europeia fossem alvo de avaliação do impacto que a exequibilidade das medidas e programas tiveram na redução dos problemas sociais, para os quais foram criados com o objetivo de responder e concorrer para a solução.

Desta minha breve análise deixo-vos algumas questões reflexivas que me surgem na minha prática profissional diária. Estamos verdadeiramente a promover a resolução dos problemas sociais complexos, ou estamos a despejar dinheiro em cima de tais problemas, sem os resolver de facto? Estamos perante uma nova geração de políticas sociais, que devem apoiar as pessoas numa situação mais vulnerável a inserirem-se socialmente, ou seja, no mercado de trabalho e nas atividades socialmente reconhecidas com um caráter de recíproca utilidade social, ou as políticas ativas falharam e reduziram-se a meras políticas indemnizatórias da pobreza?

Espera-nos, ainda, a Portaria n.º 65, de 2021-03-17, que estabelece os termos de operacionalização da transição de competências em matéria de celebração e acompanhamento dos contratos de inserção dos beneficiários do RSI para as câmaras municipais. Não sei se se adivinham tempos de prosperidade para a execução das políticas sociais ou uma era que irá acentuar as assimetrias territoriais. Tudo dependerá daquilo que hoje queremos planear. Queremos um Estado que gera ligações de dependência ou um Estado que disponibiliza meios para a efetiva inserção social das suas populações na sociedade?

Ao terminar não consigo deixar de vos transmitir uma frase que me foi dita por uma pessoa em situação de sem-abrigo na cidade de Lisboa, há muito pouco tempo atrás: “Os pobres são as galinhas dos ovos de ouro de muitas instituições”.