No canto IV d’ Os Lusíadas, um “velho d’aspeito venerando” dirige-se ao povo português, ao de então e, graças a Camões, ao da posteridade. Diz-nos o poeta que o conhecimento que o Velho do Restelo possui é “um saber só de experiências feito”, ou seja, é alguém que conhece não através de uma forma mediada pelos livros ou manuais de instruções, mas a partir da experiência.

Um outro poeta cujo centenário também se comemora este ano, à semelhança de Camões, é Sebastião da Gama. Este professor de várias escolas em Estremoz, Setúbal e Lisboa, que foi chamado de “Poeta da Arrábida” deixou vários textos em poesia e em prosa. Num deles, no seu Diário, relata a pedido do seu metodólogo (o orientador de estágio de então), as suas reflexões sobre as práticas pedagógicas exercidas em sala de aula, à luz do que o italiano Giuseppe Lombardo Radice, uma das principais influências de Sebastião da Gama ao nível da educação, escreve. Outra das suas referências era o seu próprio metodólogo, o Dr. Virgílio Couto, com quem, numa das muitas conversas que tiveram, discutiu o que é um bom professor. É o  metodólogo a recordar os seus mestres: “O meu melhor professor foi o de Inglês que não sabia nada de Inglês – disse o senhor Dr. Virgílio Couto; ora quem o julgou o campeão dos professores, creio eu, não foi o metodólogo, foi o aluno do Liceu.”[1]. Recentemente, nos noticiários, é tema comum a educação. Juntamente com a guerra, tornou-se o assunto dominante dos cabeçalhos de jornais. No entanto, a educação só faz sentido e só é um tema de interesse quando é olhada à luz da sua teleologia: a educação serve para ensinar, para que os alunos aprendam. Ninguém por esse país fora duvidaria disso. No entanto, tal como refere o mestre de Sebastião da Gama, quem determina o que é um bom professor não é outro senão o aluno. Geralmente, a opinião corrente é de que o professor está na tribuna do juiz, mas, diante do aluno, senta-se no banco dos réus. Quem decide se é um bom professor ou não é o aluno, não a sociedade ou as autoridades. O aluno determina se o professor é um bom professor por um facto empírico: o aluno aprendeu ou não aprendeu? Se aprendeu, logo é bom professor, mesmo que, à semelhança do professor de Virgílio Couto, não saiba nada de Inglês.

Creio que a Matemática, apesar das suas diferenças intrínsecas, não funcione de maneira muito diferente do Inglês. O bom professor de Matemática é aquele que ensina Matemática, tal como o bom professor de Inglês é aquele que ensina Inglês e os alunos aprendem. Em todos os casos, é o aluno quem dá a sentença.

Recentemente, a Professora Paula Pinto Pereira, docente durante mais de 30 anos em escolas portuguesas e coautora de manuais escolares, está a ser acusada de não ser professora, uma vez que falsificou os documentos relativos às suas habilitações, inventando certificados de licenciatura e de doutoramento fictícios. O Ministério da Educação exigiu que a docente devolvesse cerca de 350 mil euros em salários indevidos, apenas por ter falsificado documentação. Claro está que forjar habilitações literárias é um crime e deve ser punido como tal, mas o mesmo não quer dizer que a docente em causa não seja uma boa professora, nem sequer seja suficiente para afirmar que não é uma professora de todo, pois é inegável o facto de que passou todos esses anos em sala de aula e a trabalhar como professora de facto. Um bom professor é determinado pelo aluno. O conhecimento científico e pedagógico da Professora Paula Pinto Pereira não foi adquirido num mestrado em Cambridge ou num doutoramento na Madeira, o que não impede que a experiência seja a sua habilitação e que a sua profissão seja bem executada.

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As habilitações de Paula Pinto Pereira não foram conseguidas em nenhuma Universidade, mas conquistadas a custo na toca dos leões que é a sala de aula, onde não há doutores nem ateus.  Nessa toca, todos os professores diplomados que saem das universidades portuguesas terão de entrar um dia e de ver apagar-se-lhes da memória os conteúdos que aprenderam nos bancos de um auditório. Aí, diria eu também partindo da minha experiência, nenhum diploma per se –– entenda-se — é suficiente.

Recentemente, visitei uma escola nos Estados Unidos, The Heights School, considerada uma das melhores escolas da América. Numa conversa com o diretor, o Dr. Álvaro de Vicente, sobre a formação de professores, ele disse-me que na pedagogia não importa mais o que o professor sabe e diz, mas sim aquilo que os alunos retêm. Ou seja, aquela ínfima parte da comunicação professor-aluno que é bem sucedida. De igual forma, segundo este critério, não podemos afirmar que Paula Pinto Pereira não seja uma boa professora ou uma professora de todo. Os alunos que ensinou durante gerações vieram depor a favor da professora dizendo que aprenderam matemática e que a professora deu um contributo importante na sua vida, tal como afirmou o seu advogado de defesa. Os manuais escolares Ypsílon publicados pela editora Raiz, que foram recentemente revistos e revalidados, sem encontrarem nada que possibilitasse a sua saída do mercado, também certificam o conhecimento da docente. Podemos, no entanto, acusar Paula Pinto Pereira de estar, com os seus certificados fictícios, a ocupar um lugar que um professor com certificados poderia conquistar – um problema comum em muitas escolas públicas e privadas é a alocação de professores –, mas nada garante – nem sequer os certificados – que esse professor com certificados seria melhor a ensinar do que a docente em causa.

Portanto, nunca, por razão nenhuma, Paula Pinto Pereira deve ver ser-lhe retirado o seu título de professora, pois fez aquilo que nem todos os professores conseguem (alguns dos que andam por aí em greve nem tentam) que foi ensinar e preocupar-se com os seus alunos. Daqui podemos concluir que Paula Pinto Pereira fez bem em forjar os seus certificados? Não, fez muito mal, mas arriscou e conseguiu ser professora. Isto permite-nos pensar que as habilitações pedagógicas, tal como são professadas hoje em dia, não são condição sine qua non para se ser bom professor. Talvez Paula Pinto Pereira abra um precedente num problema nevrálgico que existe no sistema de ensino português: qual o valor teleológico das habilitações pedagógicas para a prática da docência em Portugal nos dias de hoje?

[1] Sebastião da Gama, Diário, p.33 (26 de janeiro de 1949);