O esforço de Pedro Sanchéz para se manter no poder depois do resultado das eleições de Julho mergulhou a Espanha numa encruzilhada política e existencial. É que para o chefe do governo de Madrid e líder do PSOE não bastava a aliança com a extrema-esquerda, com o Sumar, de Yolanda Diaz: precisava também dos separatistas, dos vascos do EH Bildu, que agrega antigos membros da ETA, como o líder do Herri Batasuna, Arnaldo Otegi, e dos catalães do ERC e do Junts. Separatistas esses que, depois de terem chumbado, com o PSOE e o Sumar, a candidatura de Alberto Feijóo, líder do PP, apoiada pela Direita nacional-conservadora do Vox e pelos representantes da UPN e dos regionalistas das Baleares, não estavam dispostos a viabilizar a investidura do governo de Sanchéz sem contrapartidas. As contrapartidas eram a amnistia ou indulto para os condenados pelos referendos ilegais da Catalunha e a garantia de plebiscitos à independência do País Vasco e da Catalunha.
Ora semelhantes exigências, além de serem contra a letra da Constituição, são uma machadada na unidade de Espanha. Mas Sanchéz, para se aguentar no poder, estava disposto a satisfazê-las – e satisfez. Mas nem todos os socialistas estão com ele.
O problema dos separatismos
A Espanha tem um problema nacional que, em épocas de crise, renasce e se torna ameaçador para a sua existência enquanto nação.
Os separatismos vasco e catalão, que se definem como nacionalismos, renasceram com o romantismo político do século XIX, como reacção ao ímpeto centralizador da administração espanhola, influenciado pela revolução de 89 e o império bonapartista.
Houve fenómenos regionais ou regionalizantes noutras áreas de Espanha – na Galiza, na Andaluzia, nas Baleares – mas sem a intensidade dos da Catalunha e do País Vasco. A abolição dos fueros, integrada no movimento centralista do século XIX, também contribuiu para isso, bem como o desenvolvimento industrial, que teve como núcleos principais precisamente a Catalunha e o País Vasco. No entanto, como sempre me lembrava o meu saudoso amigo Juan Vellarde Fuertes, os industriais e os banqueiros catalães e vascos também sabiam que só tinham a ganhar com a unidade da Espanha e o consequente proteccionismo.
O “desastre del 98” – o fim do império espanhol, com a perda traumática de Cuba e das Filipinas – animou os separatismos entre as elites regionais. Mas quer o fundador do separatismo vasco, Sabino Arana, quer os catalães Prat de la Riba e Francesc Cambó se queixavam de não encontrar grande entusiasmo popular pelas suas ideias, referindo-se mesmo à recusa ou à indiferença dos seus conterrâneos e contemporâneos perante a causa da independência. Os riscos de fragmentação ou desagregação das metrópoles quando o objectivo comum imperial desaparece é um fenómeno recorrente em Estados plurinacionais no sentido geográfico-cultural. No século XIX,, com a perda do Brasil e até à crise e humilhação do Ultimato, também entre as nossas elites intelectuais surgiu uma tentação de desagregação ou de reagregação oposta à de Espanha: o iberismo.
Os “nacionalismos” vasco e catalão
Os fundadores dos nacionalismos catalão e vasco eram católicos e conservadores. De direita, diríamos. Isso iria mudar, mais cedo na Catalunha, mais tarde no País Vasco. E não esqueçamos que, em ambas as regiões, o carlismo teve forte implantação; mas o carlismo foi sempre pela unidade espanhola.
Tudo mudou com a crise dos anos Trinta – depois da queda de Miguel Primo de Rivera e da sua ditadura comissarial para salvar a ordem e a monarquia (à semelhança de João Franco que, vinte anos antes, tentara, em Portugal, salvar a Coroa) – e a guerra civil que a Frente Popular desencadeou, começando a matar padres e a incendiar igrejas. A República e a Guerra Civil deram lugar a uma institucionalização dos separatismos, com a Esquerra Republicana de Catalunya a ganhar hegemonia, muito apoiada pelos anarquistas da Confederação Nacional do Trabalho. No País Vasco foi diferente: entre as cúpulas separatistas do PNV persistiu a direita católica, embora numa aliança “republicana” com movimentos socialistas e comunistas.
Franco ganhou a Guerra Civil ao cabo de quase três anos; depois, suprimiu os governos separatistas, tornou o espanhol língua oficial e obrigatória e proibiu o vasco e o catalão. Com a transição pós-franquista e a restauração da dinastia borbónica, na pessoa de D. Juan Carlos I, neto do último rei de Espanha, Afonso XIII, os partidos separatistas voltaram à legalidade e o separatismo renasceu no País Vasco e na Catalunha.
No País Vasco, o partido separatista tradicional – o Partido Nacionalista Vasco – seguiu a via político-eleitoral; mas, paralelamente, com força e a marcar com sangue e cadáveres a reivindicação, afirmou-se o terrorismo da ETA, apoiada por estratos esquerdistas e radicais da sociedade vasca.
Bem pelo contrário, na Catalunha, triunfou a guerra cultural, a estratégia gramsciana da longa marcha através das ideias e das instituições, contida no chamado “Plano 2000” de Jordi Pujol, Presidente da Generalitat. Consistiu esta estratégia em impregnar de nacionalismo catalão o ensino, introduzindo e aprofundando o estudo da Língua, da História e da Geografia da Catalunha e dos “Països Catalans”. Tudo isto foi complementado no ensino universitário, pondo os meios de comunicação da Generalitat ao serviço do catalanismo e fazendo com que fossem vistos, ouvidos e lidos em qualquer ponto da Catalunha. Houve também uma “catalanização” do desporto e dos tempos livres.
Com tudo isto, os movimentos independentistas, claramente minoritários à morte de Franco, foram crescendo nos últimos 50 anos. E os partidos nacionais – o PSOE como o PP – foram-nos normalizando e caucionando ao negociar com eles para fazer passar governos no Parlamento de Madrid.
Contra a negociação
Agora, perante este acordo inédito, há duas figuras do socialismo espanhol pós-franquista que se têm desmultiplicado em intervenções públicas, demarcando-se e criticando veementemente as negociações do seu sucessor e correligionário Sanchéz para guardar o poder: o antigo primeiro-ministro Filipe Gonzalez e o seu vice-presidente Alfonso Guerra.
Guerra voltou a fazê-lo no Domingo passado (5 de Novembro de 2023) em entrevista a Ignacio Camacho no quotidiano madrileno ABC – um jornal de centro-direita. Encarnando uma linha que sempre foi a sua, Guerra sai da reserva institucional por coerência patriótica e nacional para se pronunciar contra os seus continuadores dispostos a tudo, ou a quase tudo, para permanecerem no poder. E não hesita em dizer: “La izquierda há perdido el norte. Há olvidado su misión”, frase que serve de chamada de capa no ABC. E o que é, para Guerra, a “missão” da esquerda? É “defender a maioria de umas minorias insaciáveis” e não deixar que se sacrifiquem os ideais sociais à “correcção política” e às “políticas de género”. Diz Guerra que “hoje os partidos de Esquerda têm secretarias da Igualdade que se ocupam exclusivamente da igualdade entre homens e mulheres” e não da “igualdade de oportunidades” entre os filhos e filhas de diferentes classes sociais. “Agora está tudo fragmentado em função do sexo”, acrescenta.
Fala também na sua intervenção na Constituição de 78 que, diz, pôs fim, não só à guerra civil, mas “a dois séculos de enfrentamento entre espanhóis” (Não resisto a lembrar que um seu correligionário, Rodriguez Zapatero, com a lei da Memória Histórica, veio reabrir um dossier que, melhor ou pior, estava fechado). Mas Guerra fala, sobretudo, contra os indultos, as amnistias e o negócio com os separatistas, reservando especial indignação para a fotografia de Sanchéz com Otegi, dirigente da ETA, agora dirigente do EH Bildu: “Otegi é o mesmo. E agora [os Etarras] vão ser meus sócios? Não, esses não são meus sócios, são meus inimigos”. “Yo, esa foto no la trago”. Alfonso Guerra não esquece os seus amigos e companheiros de partido assassinados pela ETA, sublinhando que quer um governo socialista, mas não a qualquer preço.
Nos comentários pessoais, regressa à sua velha causticidade: falando da amnistia, refere-se a Puigdemont como “uma personagem cobarde, atrabiliária e delinquente”; e afirma que nunca falou com Pablo Iglesias, apesar de ter recebido solicitações nesse sentido. Quanto à guerra contra Don Juan Carlos, sai em defesa do “rei Emérito”:
“De faldas e de dinero se puede pensar todo lo que se quiera pero… eso no pueda opacar que un Rey que ha recibido de Franco todos los poderes, diga que no los quiere, que quiere una democracia.”
Mesmo que ideologicamente estejamos noutros meridianos, um político da Esquerda socialista, anticomunista e patriota, que recusa os jogos e os artifícios dos seus correligionários para ficarem no poder em geringonças que poem em risco a unidade do país, não deixa de ser um exemplo.
Era bom que a nossa Esquerda assim fosse – esclarecida, patriota e lembrada dos velhos ideais sociais – e não uma classe de políticos profissionais, uma burocracia clientelista e predadora do Estado, uma rede opressiva que, para se manter no poder, se vai socorrendo de toda e qualquer moda ideológica e cedendo a todo e qualquer grupo de pressão, por mais destrutivos, censórios e contrários ao senso e ao sentimento comum que possam ser; uma classe que, lá e cá, cada vez mais se parece com uma cleptocracia de interesses dedicada à pilhagem do Estado e da sociedade.
Pacto anunciado em Bruxelas e atentado em Madrid
Na quinta-feira, 9 de Novembro, para grande choque de parte da sociedade espanhola, tornou-se público o acordo entre Sanchéz e Puigdemont. O governo do PSOE garante ao Junts amnistia total e aceita que um mediador internacional negoceie um acordo para um referendo.
A oposição logo se pronunciou contra este pacto que põe em causa a unidade de Espanha. Feijóo qualificou-o de “processo de capitulação” e Abascal chamou “ditador” a Sanchéz. O acordo foi anunciado em Bruxelas, onde estiveram Puigdemont e o número três do PSOE, Santos Cerdán.
Não deixa de ser sintomático que o acordo sobre o que poderá vir a ser a fragmentação de Espanha se tenha celebrado no exterior, em Bruxelas, e que o país entregue a um mediador internacional a preparação e negociação do referendo.
Também sintomático foi o acto inédito de terrorismo que vitimou Alejo Vidal-Quadras, antigo Presidente do Partido Popular da Catalunha e um dos fundadores do Vox (partido de que, entretanto, saiu). Vidal-Quadras é um dos mais acirrados críticos dos acordos PSOE-separatistas e foi alvejado na Calle Nuñez de Balboa, em pleno bairro de Salamanca, quando regressava a casa, vindo da missa.