Já se tornou tradição ver desfilar, a cada 1.º de Dezembro, dezenas de Bandas Filarmónicas pela Avenida da Liberdade, em Lisboa. O som das marchas, o aprumo das fardas – por vezes algo insólitas –, e a formatura (mais ou menos precisa) criam um cenário que parece até algo extravagante. Mas, no Desfile Nacional de Bandas Filarmónicas, por detrás daquele compasso marcial inflexível, desfila algo maior: um movimento vivo, feito de histórias pessoais e comunitárias, ensaios noturnos e dedicação profunda e voluntária – que raramente encontra holofotes.
As Bandas Filarmónicas são um património cultural inigualável. Contam-se mais de meio milhar destas associações por todo o país, muitas delas com mais de dois séculos de existência. Além disso, são, na sua maioria, o único garante da difusão cultural e artística fora dos centros urbanos. Estas instituições, que vivem quase totalmente do voluntariado dos seus elementos, emergem do dinamismo das comunidades e são salvaguarda de uma extensa memória coletiva. Estão maioritariamente localizadas fora dos núcleos urbanos de Lisboa e Porto, em regiões de menor densidade populacional, o que não será coincidência. Por tudo isso, são um excelente exemplo a seguir para a construção de uma sociedade com instituições fortes.
Embora sejam frequentemente rotuladas (de modo injusto) como pouco eruditas, estas instituições têm um excelente nível cultural. Para o perceber, basta – para além de seguir, sem dogmas, o seu trabalho e repertório eclético – olhar a sua afirmação internacional e o crescente número de prémios que muitas delas vêm conseguindo, em concursos como o CIBM-Valencia ou o WMC-Kerkrade.
Mais do que pensar todo o capital social das bandas (algo esquecido e aqui notavelmente defendido por Rui Penha Pereira), ou pensar sobre o legado artístico e a memória histórica que nos oferecem, gostaria de partilhar a minha experiência enquanto membro de uma destas bandas para reconhecer a sua importância na minha educação, para lá do desenvolvimento cognitivo que advém de aprender música. Olhando em retrospetiva, ser parte de uma banda (no meu caso, desde os 9 anos, a Banda Musical de Arouca) foi uma experiência educacional que transcendeu a música, com muitas competências que a escola convencional não me ofereceria (o que é um benefício comum, como mostram algumas referências científicas).
Desde cedo, senti o impacto e o orgulho de pertencer a algo comunitário, em que todos têm um papel em alcançar um objetivo comum. Este sentimento de pertença é, para lá de um princípio musical, um profundo valor democrático de construção de um lugar-comum. Algo fundamental na sociedade atual. Esta experiência permitiu-me também trabalhar com pessoas de diferentes idades, numa vivência intergeracional que a escola não tem. Ao lado de músicos mais velhos ou mais jovens, aprendi que a diversidade e complementaridade são instrumentos centrais da existência. Aprendi ainda os benefícios da colaboração com outros músicos ou instituições, como coros ou teatros. E, a isto, soma-se a convivência com colegas com diferentes percursos profissionais e níveis educacionais – uma espécie de equipa multidisciplinar.
Como jovem, a Banda ensinou-me sobre as dinâmicas de ser incluído (ou incluir alguém) num grupo e, para lá disso, a importância de identificar referências ou o cuidado de ser, a seu tempo, um exemplo capaz. Somam-se, ainda hoje, outras aprendizagens, como o sentido de liderança, a necessidade de escutar, de ponderar críticas ou a necessidade de participar ativamente em decisões coletivas (algumas das chamadas soft skills). Os momentos de exposição pública, como concertos e momentos solísticos, trouxeram também uma forma de lidar com o nervosismo e de gerir a responsabilidade.
Além disso, pude descobrir que uma instituição é como um organismo: moldado por cada membro, na sua parca contribuição, mas vivo para além de qualquer individualidade (ou egocentrismo). Esta última lição, talvez mais subtil, mostrou-me como é essencial o esforço coletivo e que a contribuição individual, ainda que diminuta (como esta crónica), podem transformar indivíduos e sociedade.