Num artigo publicado no Observador, intitulado “Um erro histórico?”, os autores acusam o Tribunal Constitucional de, em 2012, na decisão que declarou inconstitucional as normas da Lei de Orçamento do Estado para 2012 que estabeleciam, como medida excepcional, a suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores do sector público e aos pensionistas, ter partido erradamente do pressuposto de que tal medida não estava prevista no memorando de entendimento sobre as condicionalidade de política económica assinado, em 17 de Maio de 2011, entre a República Portuguesa e a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu.

De acordo com os autores, a versão do memorando em vigor à data da entrada em vigor da LOE 2012, isto é considerando-se a segunda versão do documento, datada de 9 de Dezembro de 2011, «[…] previa, efectivamente, a suspensão do pagamento dos subsídios, detalhando pormenorizadamente o esquema de cortes que deveria ser adotado pelo legislador nacional».

Tal erro seria imperdoável, tendo em conta que, nessa mesma decisão, o Tribunal Constitucional afirmara que a República Portuguesa estaria juridicamente vinculada pelo memorando. Tal como imperdoável seria se, afinal, a acusação dirigida ao Tribunal Constitucional pelos autores se viesse a revelar infundada.

Pois bem. Se os autores se tivessem dado ao trabalho de consultar os trabalhos parlamentares que precederam a aprovação da LOE 2012 teriam verificado que a votação final global da Proposta de Lei n.º 27/XII (1.ª) – Aprova o Orçamento do Estado para 2012 ocorreu em 30 de Novembro de 2011 (DAR I série N.º45/XII/1 2011.12.02, pág. 47). Tal significa que, ao contrário do que é sugerido pelos autores, não é factualmente correcto que a medida acolhida na LOE 2012 estivesse predeterminada pelo memorando de entendimento. Inversamente, foi o memorando de entendimento a ser, posteriormente, na sequência da aprovação da LOE 2012, actualizado, em 9 de Dezembro de 2011, em ordem a estar em conformidade com a lei orçamental nacional.

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Aliás, como se sabe e resulta da Constituição da República Portuguesa de 1976, a aprovação pela Assembleia da República da lei de Orçamento do Estado é feita sob proposta do Governo (artigo 161.º, alínea g)), cabendo a este a elaboração da proposta de lei orçamental a apresentar ao parlamento. Ora, a Proposta de Lei n.º 27/XII (1.ª) – que já previa, como medida excepcional, a suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores do sector público e aos pensionistas (cfr. artigos 18.º e 19.º) – deu entrada na Assembleia da República em 17 de Outubro de 2011, bem antes da data em que o memorando de entendimento viria a sofrer a sua primeira actualização.

É sempre louvável o escrutínio das decisões do Tribunal Constitucional, mas fazê-lo do modo como o fizeram os autores do artigo apenas contribui para a mais do que muita confusão existente num domínio em que o grau de exigência da reflexão crítica deve ser máximo.

A decisão do Tribunal Constitucional é um erro histórico. Sem ponto de interrogação. Sem dúvida que tal decisão merece ser escrutinada.

Além dos votos dissidentes que, no próprio Tribunal, não acompanharam a decisão, muitos são já os trabalhos académicos que, convincentemente, questionaram a sua fundamentação jurídica. Mas é nesse plano – o da resposta à pergunta Como deve uma Constituição ser interpretada? – que a discussão deve ser feita. Não em qualquer outro.

Docente da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.
Disclaimer: à data dos factos, o autor deste artigo exercia funções como Assessor do Gabinete dos Juízes do Tribunal Constitucional.