Vivemos hoje numa sociedade fast-tudo, que exige cada vez mais de cada um de nós, das nossas vidas pessoais e sociais, das nossas habilitações académicas, da nossa produtividade laboral, dum perfil crescentemente virado para a constante atualização de competências e uma maior instabilidade quanto a percursos de vida.
Não resulta deste novo contrato social uma necessária degradação da qualidade de vida — do ponto de vista material ou pessoal — mas como qualquer revolução anterior na arquitetura da sociedade, a fase de adaptação gera (naturalmente) disrupções do ponto de vista individual e coletivo.
A crise da saúde mental é uma dessas disrupções, muito agravada por algumas das alterações induzidas por este “novo normal” peripandémico, com a diminuição das interações interpessoais (fruto da expansão do teletrabalho, da informatização de muitas profissões e da menor necessidade de trabalho face-to-face), a menor socialização mesmo fora do contexto laboral (basta pensar nas horas que passamos cada vez mais em frente a um ecrã nas bolhas das redes sociais, em séries de plataformas de streming ou simplesmente num infinito scroll numa qualquer página dum tabloide online de fofoquices) e as sequelas resultantes do stress, do medo, da disrupção das rotinas e dinâmicas do quotidiano durante os confinamentos e restrições impostas no combate ao SARS-Cov2.
As próprias “bolhas” das redes sociais referidas acima são também uma das parcelas na equação da pandemia da doença mental no mundo moderno. A ressonância fechada resultante do algoritmo das plataformas digitais cria um ambiente artificial, isolado e sem contraditório, podendo isolar-nos em nós mesmos: nos nossos problemas, nas nossas dúvidas, nas nossas fraquezas e afastar-nos da beleza da variedade, do imprevisível e da diferença do que é ser Humano.
Se, numa fase inicial, poderia ter existido a ideia duma redução das patologias do foro mental (em especial ansiedade e depressão, quiçá num efeito de menos stress laboral, menos horas perdidas no stress do trânsito — que consegue transformar o mais simpático dos seres humanos numa criatura cheia de raiva a tudo o que não se mexe — e uma capacidade de poder relaxar um pouco num ambiente calmo e familiar), a esperança que muitos (como eu) nunca tiveram, evaporou-se. Portugal continua nos lugares cimeiros da prevalência de perturbações do humor (com destaque para a perturbação depressiva major) e de ansiedade, assim como nos consumos per capita de antidepressivos, e sedativos e hipnóticos.
A degradação contínua dos cuidados de saúde no Serviço Nacional de Saúde — que se encontra cada vez mais perto dum ponto de rotura sem retorno — não poupou os cuidados de Saúde Mental (sejam eles hospitalares ou na comunidade). Não é raro encontrar casos de utentes que esperam 6 ou mais meses por uma primeira consulta de Psiquiatria hospitalar num quadro já grave e sem controlo por parte do médico assistente, com tempos de espera iguais ou superiores para avaliação de Psicologia Clínica nos Centros de Saúde.
A intervenção em fases precoces da doença mental é nuclear para os melhores resultados, e para as perspetivas de remissão completa de sintomas a longo prazo. Assim, fica evidente a importância de mecanismos organizados de rastreio precoce de doença mental na primeira infância e adolescência, assim como em contexto académico e laboral.
Contudo, de pouco serve o diagnóstico precoce e preciso sem as devidas respostas terapêuticas e de acompanhamento clínico de curto, médio e longo prazo.
Na área da formação de profissionais de saúde, nas modalidades pré- e pós-graduada, há atuações que devem estar também nas prioridades duma nova estratégia de combate à doença mental: o estigma e a impreparação. Se é verdade que a atualização dos currículos académicos e o nascimento de novas escolas médicas e de enfermagem se tem traduzido numa melhoria da qualidade e quantidade de formação em matéria de saúde mental, não é menos verdade que a preparação não é transversal. Nas gerações mais velhas, a formação pré-graduada não foi (de longe) suficiente para a prevalência atual de doença mental na população geral, e transversal a todos os estratos etários e contextos socioculturais.
Assim, nestes eixos, considero prioritária a implementação das seguintes políticas públicas:
- maior interligação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados de saúde secundários e terciários (maioritariamente hospitalares), com reforma das Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP), constituindo equipas multidisciplinares de Saúde Mental com Médicos de Medicina Geral e Familiar, Médicos Especialistas em Psiquiatria (incluindo Psiquiatria da Infância e Adolescência), Psicólogos Clínicos, Assistentes Sociais, Enfermeiros com especialização em Saúde Mental e Assistentes Técnicos com apoio efetivo à prestação de cuidados de diagnóstico, tratamento e acompanhamento contínuo de Saúde Mental na Comunidade — reduzindo a necessidade de referenciação hospitalar de casos de menor gravidade ou complexidade;
- reforço do acompanhamento em Saúde Mental nos estabelecimentos de ensino, em todos os níveis (desde o ensino pré-escolar ao ensino superior), permitindo um diagnóstico e intervenção precoce — maximizando a capacidade de remissão de patologias do foro mental. Seria recomendável a existência duma avaliação por parte de Psicólogos Clínicos a todos os alunos em idades-chave, e não apenas por sinalização como geralmente ocorre neste momento;
- desenvolvimento de recomendações oficiais em parceria com a Direção-Geral de Saúde, Ordens profissionais da saúde, Comissões de Utentes, Organizações Não-Governamentais e indivíduos reconhecidos nas áreas da Saúde Mental, Saúde Pública e Comunicação em Saúde para atualização dos currículos académicos das Escolas Médicas, Escolas de Enfermagem, mas também dos cursos de Ensino Superior de Jornalismo, Comunicação Social, Assistente Social, etc. Estas recomendações seriam, naturalmente, não vinculativas, ainda que se espere que tragam um maior reconhecimento de qualidade às IES que as aplicassem, premiando com maior procura por parte dos candidatos ao Ensino Superior;
- não podemos também esquecer quem já passou pela formação pré-graduada e pós-graduada obrigatória. Para todos os profissionais da Saúde e da Educação e profissões associadas deve ser igualmente desenvolvido um manual clínico de recomendações para abordagem à Saúde e Doença Mental, promovendo também sessões de formação pós-graduada com certificação adequada como medida de combate ao estigma da doença mental na sociedade e nos profissionais.
No seguimento daquela que será a grande discussão em temas de liberdades individuais nos próximos meses — a legalização e liberalização das drogas leves — é necessário ter também em conta que existe um risco não negligenciável de aumento do report de casos de quadros de psicose aguda, ataques de pânico ou perturbações de ansiedade generalizada. O risco de desequilíbrio da saúde mental é conhecido com o consumo de canabinóides, contudo essencialmente associado a consumidores com história pessoal ou familiar de doença mental (em especial de esquizofrenia ou outra doença do espetro das psicoses agudas e crónicas) e/ou com taxas de THC elevadas ou muito elevadas (principalmente acima dos 5%).
Uma legislação que acautele a regulamentação da constituição dos produtos em venda, limitando a % máxima de THC a níveis considerados empiricamente seguros para a população em geral deverá minorar a maioria do potencial efeito, podendo inclusivamente reduzir o risco, na medida em que um mercado ilegal e não regulado nem fiscalizado não oferece o mesmo controlo de qualidade sobre os produtos que nele circulam. Boa parte do aparente aumento de casos de psicoses agudas e outras doenças do foro da saúde mental após a legalização e liberalização de drogas leves no Canadá, Países Baixos e alguns estados dos Estados Unidos da América revelam que uma outra parte significativa do efeito poderá ser devido a um viés de report, uma vez que o consumo duma substância legal será mais facilmente referido por utentes num serviço de saúde que o duma substância ilegal — não esquecendo os consumos cruzados com drogas pesadas, que muitas vezes podem não ser referidos e que contribuem para um risco exponencialmente superior que o consumo isolado de derivados canabinóides.
Não obstante, é necessário ter em conta três princípios que devem reger a gestão das potenciais consequências em saúde:
- implementação de campanhas eficazes e disseminadas de literacia em saúde e informação à população em geral, e especialmente a grupos mais vulneráveis, sobre os riscos do consumo de canabinóides, procurando que a procura seja consciente, livre e informada. Deve ser aplicado um esforço particular em estabelecimentos de ensino e dentre os estratos sociais mais jovens e mais desfavorecidos;
- reforço de financiamento a equipas de saúde mental comunitárias, por forma a conseguir dar resposta a um possível (ainda que não garantido) aumento de procura. Idealmente tal deveria ocorrer via consignação direta de parte da receita fiscal gerada com os produtos canabinóides, ainda que a Constituição da República Portuguesa, infelizmente, o não permita para campanhas de sensibilização contra consumos e comparticipação de custos de gestão terapêutica de quadros de doença mental;
- produção antecipada de Normas de Orientação Clínica (NOCs) por parte da Direção-Geral da Saúde (DGS) e programas de atualização clínica para profissionais de saúde na temática específica do consumo de drogas leves e suas consequências.
Por último, Portugal é o segundo país da OCDE com maior consumo de antidepressivos per capita, de acordo com o relatório Health at a Glance 2021, com níveis mais de 2 vezes acima da média europeia. Também no uso de sedativos e hipnóticos (com destaque para a classe das benzodiazepinas) Portugal ocupa um triste lugar cimeiro de entre os países da organização, com consumos 53% acima da média europeia em idades acima dos 65 anos.
O recurso a terapêuticas farmacológicas é não só expectável como configura boa prática de acordo com a legis artes e a melhor evidência científica numa fração significativa dos casos. Contudo, é conhecido o uso crónico de benzodiazepinas e outros agentes sedativos e hipnóticos, com comprovadas consequências graves a longo prazo (desde logo o risco de dependência e agravamento do risco de demência). É urgente, por isso, que a DGS desenvolva NOCs específicas para a desprescrição de agentes sedativos e hipnóticos, de racionalização do uso de antidepressivos e de agregação da melhor evidência na gestão de casos agudos e crónicos de patologia do foro mental — em particular em Cuidados de Saúde Primários.
A melhor gestão de cada utente implica ainda a possibilidade de acesso a informação clínica de diversos prestadores, com a criação dum Registo Eletrónico de Saúde — com informação sob controlo do utente a todo o momento, mas permitindo acessibilidade a informação detalhada de prestadores de todo o sistema. É a garantia de melhores cuidados, maior segurança do ato médico e aumento da interdisciplinaridade de tratamento em doenças que tanta vez o exigem.
Bem sei que em Portugal a definição de políticas públicas é sempre morosa, disfuncional e com aplicação profundamente deficitária e deficiente. Bem sei que existem Programas Nacionais de Saúde Mental, sem resultados práticos. Bem sei que esperar que a DGS produza novas NOCs, quando desde 2013 a sua criação é residual, pode ser esperar muito. Bem sei que a Saúde Mental ainda é vista como o parente pobre da Saúde, e que a doença mental ainda é alvo dum profundo estigma social e até dentro do sistema de saúde.
Mas também sei que há cada vez menos pessoas disponíveis para fingir que “vai ficar tudo bem”. Que há cada vez mais pessoas a exigir que se encare a Saúde Mental como apenas mais uma dimensão da saúde global individual e das comunidades, que seja tido em conta os custos pessoais, sociais e económicos de dias, semanas, meses e anos de produtividade académica e laboral perdidas, de vidas familiares destruídas, de potenciais perdidos, muito de forma evitável. Também sei que somos cada vez mais os que querem que a mudança se imponha.
Tudo isto existe. Tudo isto é triste. Mas tudo isto não tem de ser fado.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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