Em qualquer País, as leis quando são elaboradas têm como objectivo, normalmente, a melhoria da vida dos cidadãos e das Organizações.
No caso destas últimas, racionalizar os recursos e as estruturas, motivar e envolver os colaboradores e procurar optimizar os resultados, constitui-se como o paradigma a ser perseguido, quando se procura legislar no sentido de garantir o quadro legal que melhor se adeque aos desafios e às ameaças com que as Organizações se defrontam no âmbito da sua actividade.
Contudo, semelhante realidade tende a não se verificar, quando se depara com a falta de conhecimento e de experiência do legislador, aliada à sua falta de visão institucional, ao oportunismo político e, não raras vezes, à cedência a preconceitos enraizados, acabando por se traduzir, quase sempre, em normativos incoerentes e desajustados, sobre a matéria a legislar.
Terá sido isso, provàvelmente, que aconteceu quando da elaboração da presente reforma da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), aprovada, recentemente, em conselho de ministros, por via duma proposta do ministro da defesa nacional (MDN), para o efeito.
Na realidade, desde há algumas semanas que o ministro se vinha desmultiplicando em intervenções junto da Comunicação Social e na Assembleia da República sobre esta reforma, apontando como objectivos principais a modernização das Forças Armadas e o repensar do seu futuro, bem como aproximá-las do modelo da estrutura militar de outros países europeus, sem que se entendesse bem a urgência e a necessidade de tal iniciativa, no momento particularmente grave que o País atravessa (?).
Ficamos a saber que, na sua essência, o que era proposto se materializava num acentuado reforço das competências do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), traduzido num substancial prejuízo das responsabilidades e das competências dos CEM’s (Chefes de Estado Maior) dos Ramos, não se escusando o ministro de afirmar, no entanto, que tinha a concordância dos mesmos, para o efeito.
Na verdade, pelo que é dado a conhecer, aquela concordância limitava-se, simplesmente, a um único chefe militar, o CEMGFA, que como tudo indica terá sido o mentor do projecto da reforma em questão, facto oportunamente aproveitado, sob o ponto de vista político, pelo próprio MDN.
Entretanto, diversas entidades têm vindo a público colocar em causa o racional seguido para as alterações propostas à actual Lei, alertando que as competências dos CEM’s dos Ramos seriam profundamente esvaziadas, ficando os mesmos reduzidos a um papel meramente secundário, no quadro das relações hierárquicas com o CEMGFA e com a tutela, se a reforma avançada, com o enquadramento proposto, viesse a ser aprovada.
Alertava-se, ainda, que, como resultado imediato, o equilíbrio e a coordenação entre o CEMGFA e os CEM’s dos Ramos, até agora verificados, ficariam seriamente abalados, podendo, mesmo, vir a pôr em causa a eficiência colocada nos processos de planeamento e de emprego das Forças, e na optimização das capacidades do Sistema de Forças Nacional disponíveis, em cada momento.
Deste modo, marginalizando as Chefias dos Ramos do topo do patamar da decisão política estratégica, estariam criadas as condições para a concretização de um velho projecto, há muito ambicionado pela classe política, em Portugal, no sentido de subalternizar as FA, diminuir-lhes a visibilidade pública e social, e submete-las a uma total governamentalização, procurando anular, assim, o seu carácter institucional.
Se não tiver sido este o propósito, interroga-se, então, como já amplamente referido, sobre o que está errado, ou sobre o que tem funcionado menos bem no actual quadro da organização das FA, que possa justificar as alterações, agora, propostas pelo MDN?
No mesmo sentido, impõe-se indagar quais as disfunções identificadas, no âmbito da estrutura superior de comando das FA, entre o CEMGFA e os CEM’s dos Ramos, no domínio do respectivo relacionamento hierárquico e funcional, bem como quais as razões que têm dificultado o processo de decisão que o MDN vem mantendo com estes últimos, para que, no âmbito da reforma anunciada, sejam afastados do despacho com a tutela (?)
Estas interrogações, por muito que o MDN pretenda mistificar a respectiva resposta, e que o CEMGFA parece acompanhar, indicam, de forma clara, que nada tem estado em causa nestes domínios, uma vez que as missões atribuídas aos Ramos, sob o comando e controlo operacional do CEMGFA, conforme a lei, aliás, já preconiza, têm sido sempre cumpridas com prontidão, relevância e reconhecimento público, quer internamente, quer a nível internacional.
O Presidente da República, na sua qualidade de comandante supremo das FA, estará, seguramente, elucidado sobre as preocupantes consequências para a componente militar da política de Defesa Nacional, caso a pretensa reforma seja aprovada, realidade que não seria estranha à irrelevância a que os Chefes dos Ramos seriam reduzidos, no processo da decisão estratégico militar.
Terá sido a sua reflexão sobre esta matéria, que o terá levado a afirmar recentemente, que …sabemos bem como os homens, hoje, e um dia as mulheres, também, no desempenho destas funções (CEMGFA) passam…, mas as Instituições ficam para além deles e delas…
No entanto, o MDN, apesar das reservas e das interrogações levantadas para a falta de oportunidade e da validade intrínseca das alterações propostas, acabou por apresentar o projecto de reforma da LOBOFA, em sede de conselho de ministros, tendo afirmado (avisado?) no final, após a respectiva aprovação, perante a Comunicação Social, que não esperaria obstáculos, por parte das Chefias militares, na implementação da reforma em questão.
Seria importante que o ministro pudesse explicar como pode formular uma aspiração desta natureza, quando ele e o CEMGFA rejeitaram liminarmente, antes, as propostas de alterações mais importantes feitas à Lei, pelos CEM’s dos Ramos (?)
Seria, por outro lado, interessante saber como pode sugerir um consenso alargado na aceitação da Lei, quando nem sequer deu a conhecer aos CEM’s dos Ramos a versão final da respectiva proposta, que apresentou no conselho de ministros (?)
Convirá referir, entretanto, que uma das principais razões que, invariàvelmente, o MDN enunciou como justificação para a proposta da reforma apresentada, terá sido a aproximação que proporcionaria ao modelo de organização das FA de outros países, na Europa e na própria OTAN.
Semelhante justificação, contudo, além de pecar por ser pobre em termos de conteúdo, é igualmente isenta de coerência, uma vez que nenhum motivo suficientemente válido obriga ou justifica a necessidade de mudar o modelo de organização das Forças Armadas portuguesas: porque se é, apenas, por mudar, não faz sentido, e se, simplesmente, é para copiar, é legítimo perguntar porquê (?)
Nada obriga Portugal a seguir um modelo de organização militar seguido por outros países, até porque, com certeza, existirão vários outros modelos, também diferentes, reflectindo a especificidade própria da política de defesa nacional de cada um deles, da sua singularidade e posicionamento estratégico, da sua identidade cultural, e do seu padrão de desenvolvimento económico e social.
Finalmente, parecendo ser o MDN adepto de modelos importados, seria, então, coerente que procurasse copiar, também, as condições de apoio e de funcionamento que outros países garantem aos seus aparelhos militares e à dignificação da profissão militar, onde não persistem, lamentàvelmente, como nas FA portuguesas, as graves e continuadas injustiças no âmbito da retribuição salarial dos militares, bem como as preocupantes lacunas nos sistemas de recrutamento e nos processos do reequipamento, a par da pré falência do sistema de saúde militar e do Hospital das FA, bem como da ADM e do IASFA.
Se estas questões, também, fossem alvo de imitação por parte do MDN, talvez a persecução da reforma que, agora, pretende ver aprovada na Assembleia da República pudesse ser melhor entendida…
Lisboa, 10 de Abril de 2021