Na madrugada do dia 28 de Setembro de 2022, o mundo assistiu, atónito, a uma acção que podemos reputar de grave e incomum nas autoproclamadas democracias ocidentais liberais: a retirada compulsiva de cartazes políticos de uma rotunda da capital pela mão do poder executivo (autárquico), sob o auspício de ninguém, a ausência de consensos e a falta de um utilíssimo “parecer”.
Uma vez mais, o “espírito de Abril” – entidade mítica, continuamente enxovalhada desde as zero horas do dia 26 de Abril de 1974 por forças difusas mas persistentes – contorceu-se. Nada, contudo, supunha o contrário: a 21 de Setembro de 2021, o poder executivo da cidade havia sido “cedido” à concupiscência de um candidato lúbrico.
Sob a forma de manifestações mais ou menos formais, e dos respectivos ecos, as reacções não se fizeram esperar: surgiram nos partidos, alastraram a militantes e simpatizantes, e acabaram numa “comissão nacional” não sem antes marcarem presença, segundo relatos apócrifos, numa sessão extraordinária da assembleia da Junta de Freguesia de Unhais-o-Velho.
O PCP acenou – e bem! – com a “censura” e a violação da tríade “liberdade de expressão, lei e Constituição”, lembrando ainda que a cidade se encontra num “deplorável estado de higiene e limpeza”, o sempre popular argumento essencialista “em vez de se preocuparem com o que interessa, perdem tempo com o que não interessa”.
O Chega, um curioso partido de características unipessoais empenhado em cultivar o personalismo, avisou: é um “abuso de poder” e consubstancia uma atitude “populista”, avaliação confiável dado o largo conhecimento e domínio sobre a matéria.
A CNE, veneranda e augusta entidade que a todos aproveita, guardiã última do lendário “dia de reflexão”, e desperta enfim do longo inverno entre exercícios eleitorais, fez saber que duvidava seriamente da “legalidade” do acto, falando mesmo em “crime”.
Consultando as redes sociais, muitos foram os que, desinteressadamente, lembraram o óbvio: uma democracia sem espaço para mensagens políticas é uma democracia manca; tentativas de “limpeza” do espaço público, sob a batuta da ordem e da moral, escondem concepções fascistóides de assepsia social; o actual executivo camarário tem na sua base a consagração de um facto consumado: o seu presidente é um pobre de espírito e um zero à esquerda; os partidos ficaram despojados de um instrumento de comunicação com os seus eleitores, que assim se vêem subtraídos de orientação e nutrição políticas; as rotas migratórias dos tentilhões encontram-se seriamente comprometidas, à falta de georeferências sob a forma de parangonas; a street view no Google Maps ficou sumariamente desactualizada; o turista, em modo pedonal ou a bordo do anfíbio Hippotrip, na sua contumaz voltinha à rotunda para o balanço final rumo às águas, corre o risco de voltar à respectiva terrinha desconhecendo o estimulante teor dos soundbites políticos dos partidos portugueses: da criativa e “engraçada” IL, ao freirático e temeroso Chega; do encantador e seríssimo PS, ao pujante e firme PSD; do consciente e razoável PAN, ao pacifista e coerente PCP; do consensual e simpático Livre, ao justiceiro e aguçado BE.
É provável que o povo – outra entidade mítica, continuamente enxovalhada desde as zero horas do dia 1 da nação portuguesa, no longínquo ano de 1143 – observe com prosaica indiferença estas manifestações reactivas, desviando a sua atenção para o facto de a Praça do Marquês de Pombal ser agora um lugar onde se vislumbram, de forma desimpedida, as árvores e os arbustos que a rodeiam e conformam; a fisionomia e a fachada dos prédios; o oblongo corredor ajardinado e arborizado de cerca de 25 ha, projectado por Keil do Amaral e a que se atribuiu o nome do primeiro monarca britânico da casa de Saxe-Coburgo-Gota, local de uma das mais belas paisagens lisboetas assegurada pela linha de continuidade da avenida da Liberdade até ao rio.
99,99% das restantes artérias da cidade (estive a fazer as contas) continuam disponíveis para propaganda política de altíssimo nível. Mas o que o povo parece não perceber é que a democracia está em perigo. Urge repor a normalidade, a bem da nação e em prol da res publica.