À hora a que escrevo, a contagem de cadáveres, feridos e israelitas raptados, não terminou. Os números são incertos. Arriscar uma crónica no rescaldo de uma carnificina é um exercício penoso e iminentemente superficial. Espero que me perdoem o atrevimento e a escrita torrencial.

Deixo uma nota prévia: este artigo não se destina, sendo aliás desaconselhado, aos que observam Israel como uma anomalia ou um aborto histórico, acumulando ou não uma satisfação intima pelo que acaba de acontecer e o desejo disfarçado de pulverizar um país. Se o leitor pertence a este grupo, pode parar aqui.

O conflito israelo-palestiniano conta com 75 anos: a idade da fundação do Estado de Israel. Mas a História não começou no dia 14 de maio de 1948. A compreensão do conflito – antecedentes, contornos, contexto – exige tempo, paciência e disponibilidade. E não é seguramente no espaço de um artigo de opinião que arrumaremos esse propósito.

Teríamos de recuar a 1933, ano da ascensão de Adolf Hitler ao poder, e aos anos subsequentes. Ao Anschluss de 13 de Março de 1938, que marca a intensificação do encarceramento de judeus alemães e austríacos nos campos de concentração de Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen. Aos massacres da Kristallnacht, em Novembro 1938. Ao rescaldo medonho da II Guerra Mundial: a morte de 6 milhões de judeus – marcados, perseguidos, presos, torturados e assassinados “cientificamente”.

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Teríamos de recuar à Rússia do início do século XX, onde milhares de judeus foram assassinados em pogroms. Ou à mesma Rússia no século XIX, altura em que o termo pogrom foi cunhado para significar “a perseguição e o massacre organizado de judeus” perpetrado pelo regime czarista, expressão, aliás, que passou a ser retrospectivamente aplicada.

Numa nota mais doméstica, poderíamos recuar a 19 de Abril de 1506, dia do início de um pogrom no Convento de São Domingos (Lisboa), de que resultou o massacre de 1000 a 3000 cristão-novos, acusados de todos os males que então assolavam o país (peste, seca, etc.) por puro preconceito.

Ou a 31 de Março de 1492, data da publicação do édito de D. Isabel e D. Fernando de Castela, decretando a conversão ao cristianismo dos judeus no espaço de quatro meses, sob pena de expulsão. Em Portugal, D. João II viria a permitir a entrada dos judeus ao abrigo de um salvo-conduto, mas com um prazo de validade limitado: oito meses. O decreto de 1492 precedia o de 5 de Dezembro de 1496, no reinado de D. Manuel I: Portugal dava ordem de expulsão aos judeus, a concluir até Outubro de 1497, com a “magnânima” alternativa da conversão forçada até à Páscoa deste ano.

Teríamos de recuar à Alexandria de 38 DC, que alguns historiadores sinalizam como o ano do primeiro pogrom, a que se seguiu outro em 66. E outros entre 1189 e 1190, em Inglaterra. E durante a Peste Negra, entre 1348 e 1350, em Toulon, Basileia, Estrasburgo…

Os saltos temporais são enormes e servem para ilustrar uma longuíssima história de medo, angústia, perseguição, tortura e morte. Mas também de sucesso. Durante séculos, e um pouco por todo o mundo, as comunidades judaicas aprenderam à sua custa e com o seu sangue a viver sob o manto negro do preconceito, da inveja e, no final da linha, da mais pura maldade. Ganharam resiliência, estamina, espírito de coesão e solidariedade. Prosperaram, empobreceram, levantaram-se de novo. Mas faltou sempre um lugar, um território, uma pátria.

Foi o peso insuportável desse vazio histórico que pairou sobre a proposta de partilha do território por parte da ONU, em 1947 (resolução 181): a de entregar 55% da Palestina para a fundação de um Estado judaico (corolário último da Declaração de Balfour de 1917), deixando 45% do território à população árabe da Palestina. O local escolhido não poderia ser mais umbilical. A proposta (aprovada) foi liminarmente rejeitada pelos países árabes.

No seguimento da resolução de 1947, no dia 14 de Maio de 1948 era assinada a Declaração de Independência do Estado de Israel. No dia seguinte, a guerra entre a Liga Árabe e Israel rebentou. Um longo e doloroso caminho foi trilhado deste então, com a paulatina perda de território por parte dos palestinianos e com o sonho de uma “Solução de dois Estados” (Comissão Peel, 1937) em modo miragem.

Desde 1948, e até praticamente aos nossos dias, o mundo assistiu, mais passiva do que atonitamente, à mais estúpida das obstinações por parte da moldura de países árabes na região. Egipto, Síria, Líbano, Transjordânia (actual Jordânia), Iraque, Arábia Saudita e Iémen (países-membros originais da Liga Árabe), continuam, hoje, a passar entre os pingos da chuva da responsabilidade histórica na tragédia de dois povos: na forma como recusaram a criação do Estado de Israel desde o seu início; na péssima mediação do conflito; na forma como mantiveram sob o estatuto de refugiados milhares de palestinianos, recusando desumanamente o seu acolhimento e integração; nos avanços e recuos alinhados com as diversas cúpulas palestinianas ao longo dos anos, de onde saíram dezenas de declarações, acordos, resoluções, planos, diplomas e road maps inconsequentes.

É preciso ter memória. Eu não me esqueço de Avraham Stern e do Irgun, grupo que o Haganá, o braço militar do establishment sionista, em boa hora erradicou. Não me esqueço de Deir Yassin, nem do atentado ao Hotel Rei David. Não me esqueço de quem matou Rabin. E não me esqueço do que escreverei mais à frente sobre os anos recentes.

Mas também me lembro das palavras de Nasser em 1967: “o nosso único objectivo é a destruição de Israel”; seguidas das do presidente Aref, do Iraque: “O nosso propósito é claro: fazer com que Israel desapareça do mapa”; e das de Ahmed Shukairy, o dirigente da OLP, a 1 de Junho do mesmo ano: “Os judeus da Palestina terão de partir… a antiga população judaica que venha a sobreviver poderá ficar, mas é minha convicção que nenhuma delas sobreviverá”. E também não esqueço que a Fatah e a OLP foram filhas ilegítimas do Irgun na utilização científica do terror. Também não me esqueço de que os objectivos principais da OLP estavam lá, preto-no-branco: uma Palestina livre e a destruição do estado de Israel. Os mesmos que constam, ainda hoje, na carta de “princípios” do Hamas.

Não me esqueço do Yom Kippur em 1973. Não me esqueço dos Jogos Olímpicos de Munique e do Setembro Negro. Recuso-me a esquecer os atentados em Viena e em Roma nos check-in da El-Al, ou do massacre de 50 crianças israelitas à queima-roupa num kibutz.

Teríamos de revisitar as raízes do fundamentalismo e do pior nacionalismo árabes. Teríamos de observar o profundo e reiterado sentimento anti-semita, impregnado na região (o Mein Kampf e os Protocolos permanecem livros de cabeceira). O anti-semitismo vem de longe, mas a animosidade mais radical não é milenar. Basta recuar, para o efeito, ao princípio dos anos 1920, para verificar como a coabitação entre árabes e judeus faria inveja à de hoje. Os judeus representavam, então, 10% da população. Eram uma minoria “inofensiva”. Em 1921, Amin al-Husayni foi empossado pelos britânicos como Grande Mufti de Jerusalém e em pouco mais de dez anos perpetrou o assassinato de centenas de árabes e judeus moderados. Lançou as sementes da pior propaganda anti-semita que perdura até aos nossos dias. Um homem que venerava Hitler e que tinha como amigo Himmler. A história é longa e intricada.

Nenhum simpatizante de Israel com dois neurónios (é o mínimo: com apenas um, não é garantido) e dotado do sistema que confere à pessoa humana características de decência, pode desvalorizar ou simplesmente varrer do seu consciente os erros que Israel tem cometido, agudizados nos últimos tempos pelo protagonismo das franjas políticas mais radicais: a errática e maximalista política de colonatos, que tem acentuado a canibalização de território palestiniano; a transferência de populações palestinianas e a imposição de medidas drásticas no que respeita à circulação de pessoas e bens, parte de uma estratégia de controlo; a produção de legislação tendencialmente discriminatória; o gatilho leve das IDF em Gaza e na Cisjordância; o crescente domínio sobre Jerusalém, a “cidade três vezes santa”. Podia continuar. Apesar de tudo, isto: 21% da população de Israel é árabe (cerca de 2 milhões, na sua esmagadora maioria com direitos de cidadania plenos), boa parte descendente dos árabes que permaneceram no interior das fronteiras após a guerra de 1948; qualquer cidadão (incluindo os árabes) pode recorrer ao sistema judicial para reivindicar direitos e intentar processos; actos de violência injustificada por parte das autoridades militares e policiais contra árabes e palestinianos, são investigados e julgados (infelizmente, não todos); a corrupção (que, by the way, grassa há décadas no seio das autoridades palestinianas, sugando escandalosamente recursos às populações civis) é julgada nos tribunais; políticos perdem mandatos e são condenados; a comunidade LGBT é acarinhada, os direitos das mulheres consagrados (um oásis no médio-oriente); partidos árabes marcam presença no parlamento de Israel; há uma fortíssima opinião pública e publicada que escrutina os comportamentos abusivos das autoridades israelitas e as políticas que agravam os níveis de conflitualidade. Podem não estar a perceber, mas eu explico: Israel é a única democracia da região. E é – com todos os defeitos e com as anomalias próprias de um país que vive sob ameaça desde a sua criação, gerindo permanentemente ódios, desconfianças, provocações, violência – um Estado de Direito.

É triste e trágico e revoltante constatar que uma parte da geração que passou pelos acontecimentos do dia 11 de Setembro de 2001, não aprendeu nada. Rigorosamente nada. Continuam hoje, como o fizeram então, a justificar o injustificável, a desculpar o indesculpável, a premiar assassinos com a sua suposta compaixão pelos “fracos & oprimidos” (como se alguém em nome destes não fosse capaz de perpetrar a barbárie). Pior: sem o saber, ou em negação, insistem em defender os inimigos do próprio povo a quem juraram simpatia e solidariedade irrestrita (sim: os terroristas do Hamas, que ainda hoje rejeitam uma “solução de dois Estados”, qualificam-se plenamente como inimigos do povo palestiniano). Uma boa parte, pouco ou nada sabe de História, e o pouco que aprendeu provém da propaganda mais reles e das distorções mais insidiosas. Revelam enormes dificuldades em relacionar factos e em colocá-los em perspectiva. Em relação a Israel, enchem a boca de bordões (“genocídio”, “apartheid”, “limpeza étnica”, etc.) e factos “resolutos”, convenientemente simplistas, despidos de contexto e explicação. Não há nada de edificante neste comportamento, que nalguns casos reflecte a mais execrável deformação moral.

O que aí vem vai ser longo e não vai ser bonito. Tudo isto é trágico. Rezarei pelos israelitas e pelos palestinianos. Afastar-me-ei dos que se revêem na violência, tolerando-a ou incentivando-a imoralmente. Nesta hora, não é opção: trata-se de uma necessidade.