Era de esperar que as características imputáveis à campanha eleitoral, seja no estágio pré ou pleno, soçobrassem após as eleições. Uma campanha marcada por uma espécie de prosaísmo corrosivo, servida por exaustivas perícias levadas a cabo em prime time por engajados empedernidos (o cúmulo foi alcançado com a presença do doutor Paixão Martins, já registado no Guinness Book of World Records), e consubstanciada por discussões entre candidatos dignas de um recreio infantil, daria irremediavelmente lugar a análises e conclusões pós-eleitorais que, se não fossem estultas, seriam tontas.

A primeira conclusão, difundida em grande medida pela direita montesina com a habitual discrição de uma sessão de reggaeton num funeral, e com direito à desqualificação dos que ousam discordar (houve quem decretasse a “indigência intelectual” de quem à direita “se mistura até pessoalmente e intimamente com pessoas da esquerda radical”), é a de que a estratégia do “não é não” falhou. Baseiam esta espectacular conclusão num silogismo que rivaliza em grandeza com a discografia de Marcel Marceau: 1) a AD defendeu o “não é não”; 2) a AD alcançou uma vitória pífia; 3) logo, a culpa foi do “não é não”. Ninguém, no seu perfeito juízo, se atreveria a este tipo de inferência, não se desse o caso de a mesma estar a ser produzida por quem já antes entendia como desejável, de forma mais ou menos disfarçada, um entendimento com o Chega. Para além da confusão entre correlação e causalidade, a ilação é, sobretudo, um notável exemplar do viés da confirmação. É, aliás, uma conclusão siamesa de outras propaladas pela esquerda dos assombros (“I see fascism everywhere”): a presença do doutor Passos Coelho foi uma desgraça (muito querida ao cardeal Daniel ‘Richelieu’ Oliveira), as declarações do doutor Núncio desviaram votos da AD para a esquerda ou para o Chega (neste caso porque o doutor Ventura não as acompanhou). E por aí fora. Entendamo-nos: se queremos distância de estados de “indigência intelectual”, sejamos honestos. Ninguém sabe em que medida a estratégia do “não é não” contribuiu para o resultado menos bom ou menos mau da AD. E o resultado dessa estratégia, positivo ou negativo, apenas tomará corpo e forma a partir de agora.

A segunda conclusão, que em sofisticação só tem paralelo com a lírica de Joaquim Barreiros, aponta como único, desejável e inelutável caminho um entendimento formal, de pendor governativo, com o Chega. “Entreguem-lhes uns ministérios”. As razões invocadas oscilam entre a vivificação numérica (“um milhão e cem mil pessoas é muita gente”) e a santinha da governabilidade (“sem o Chega isto não dura seis meses”).

Pelo meio, decorre o concurso “Quem melhor explica, entende e disseca o eleitorado do Chega”. Este esforço exegético já produziu tipos: o saudosista do salazarismo (que é como quem diz, da “ordem”); o homofóbico; o xenófobo; o racista; todos os profissionais com as quotas em dia na ANTRAL; o desiludido com a democracia; o espoliado do fisco; o anti-comunista primário; o anti-socialista primário; o tipo que nunca leu Kant nem frequentou o Príncipe Real; o abstencionista que despertou do sono senil com os tiros na caravana do Chega; metafísicos biliosos; o apologista da corrente “isto é tudo uma choldra”; o que acumula todas as anteriores características. Como é bom de ver, o eleitorado do Chega é tudo aquilo que queremos que seja e que, em última análise, corrobore a nossa “perspectiva” sobre o assunto.

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Por não podermos reduzir o eleitorado do Chega a um, três ou dez tipos mais ou menos grotescos, enfiados prazenteiramente num basket of deplorables para consolo das nossas espectaculares consciências, importa perceber por que razão o mais significativo facto político destas eleições aconteceu (a saber: o bloco da direita, com a ajuda do Chega, recebeu 53% dos votos, preenchendo, para já, 60% dos assentos no parlamento). A resposta é clara: vontade de mudança, insatisfação sedimentada, uma dissonância irresolúvel entre o país aparente e a realidade tangível, que o Partido Socialista, por videirismo, não consegue ou não está interessado em processar, perdido no sonho lúbrico da eternização a que a dupla estratégia de dar gás ao Chega invocando o odioso não foi alheia.

Não podemos ignorar a presença de quarenta e oito deputados, and counting? Claro que não. Nem a dos restantes cento e oitenta e dois. A matemática não quer nada com triunfalismos bacocos e euforias ocas: 82% dos eleitores não votaram no Chega. Interessará perceber por que razão mais de um milhão de portugueses terá abandonado o remanso do lar para colocar a cruzinha nesse partido? Claro que sim. Assim como interessará perceber por que razão duzentas mil pessoas insistem em votar no Partido Comunista Português; cerca de duzentas e setenta mil confiaram na proficiência económica da doutora Mortágua; duzentas mil pessoas deram o seu voto ao partido do espertíssimo doutor Tavares; e cerca de um milhão e oitocentas mil pessoas entenderam razoável contar com o doutor Nuno Santos para primeiro-ministro. Perceber o que aconteceu e por que razão aconteceu representa a suprema utilidade de um sistema que conta com o sufrágio universal, o primado da lei, a separação de poderes e a existência de instituições representativas para servir uma ideia primordial de comunidade: a de um espaço onde seja possível a coexistência de todos os tipos, figuras e espécimes sem a eliminação física ou a alienação dos mais fracos pelos mais fortes.

Como escreveu há dias Ana Cristina Leonardo, mais de um milhão de portugueses votaram num partido de discurso pobre, quadros inexistentes e propostas populistas. Se é verdade que os deputados representam o povo, não é menos verdade que os partidos podem não representar as razões de fundo de todos os seus eleitores – “ir ao engano” é a expressão que me ocorre – ou representar ideias que a maioria dos eleitores (os tais 82%) observa como impróprias para consumo ou com eficácia nula para as suas vidas. A História está repleta de exemplos de votações mais ou menos expressivas em partidos que contribuíram para afundar países – financeira, social e espiritualmente. No caso português, escuso de mencionar o elefante. Assim como de partidos que insuflaram e fabularam a sua importância eleitoral (o Partido Comunista Português imediatamente antes e após as eleições constituintes, por exemplo), como parece ser, agora, o caso do Chega. São, regra geral, partidos que acrescentam zero ao que interessa (competência, conhecimento, leitura adequada da realidade) e tudo ao que não importa (conflitualidade, grosseria, sectarismo).

A não ser que ganhe, um aumento assinalável do número de votantes num determinado partido não significa nem implica legitimidade governativa e muito menos a força da razão (de uma razão que a esmagadora maioria dos votantes não reconheceu). À data a que escrevo esta crónica, quer-me parecer que o Chega não foi o partido mais votado. Longe disso. Os partidos que constituíram a coligação Aliança Democrática devem tentar formar um governo forte e credível que sirva o país e dê corpo e sentido à vontade de mudança, no respeito pelos seus princípios e pelo seu programa. No momento seguinte ao tiro de partida desta legislatura, os deputados dos partidos que suportam o governo devem ter um mandato claro para dialogar com todos os partidos, incluindo o Chega, não perdendo de vista o que é inaceitável, desarrazoado, inconsequente ou ilusório. É aborrecido dizê-lo, mas insisto: há um país para governar e fortíssimas carências por debelar: na saúde, no ensino, na administração pública, na justiça e em domínios que o mais mesquinho e cobarde tacticismo político arredou da discussão pública.

Se o doutor Ventura e o doutor Nuno Santos derrubarem o governo, a democracia terá recursos e respostas. Sem medo de chantagens, tão próprias de quem tem noção da sua pequenez, mas não tem ideia da sua soberba.