Há cerca de um mês, a ONU, através da sua missão para investigar os eventos pós-eleitorais na Venezuela, revelou que houve um aumento “consciente” da “brutalidade da repressão”, para gerar um clima de medo entre a população e a desmobilização da oposição, falando também de “crimes contra a humanidade”.

São denúncias graves de violência eleitoral e de violações da integridade eleitoral, feitas pela única organização que pode representar toda a humanidade. A legitimidade do regime de Maduro já não vem das eleições nem do apoio internacional. A contestação já não se resume aos estados “ocidentais”, mas conta com uma coligação mais vasta a exigir a transparência das eleições, que inclui, por exemplo, o Brasil e a Colômbia.

O regime de Maduro não tem sido propriamente conhecido pela qualidade das suas eleições nem pelo respeito pelos direitos humanos. Uma vez mais, o processo eleitoral esteve marcado, desde o início, pela fraude e pela violência.

Tendo convidado uma missão de observação eleitoral da UE, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral (equivalente à nossa Comissão Nacional de Eleições) revogou a sua autorização. Elvis Amoroso acusava a UE de não serem bem-vinda enquanto mantivesse as sanções. Devia estar a falar das sanções impostas ao próprio – e não ao povo…

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Em todo o caso, em 2021, nas eleições regionais e locais, num contexto semelhante de sanções e com o “espectro” Guaidó a ser apoiado pelo ocidente, a UE pôde ter uma missão de observação eleitoral.

Para o regime, talvez as eleições nacionais sejam mais difíceis de ter sob controlo. Além disso, havia agora uma ampla coligação de oposição, com possibilidade real de ganhar as eleições. Por isso mesmo é que María Corina Machado, a principal candidata da oposição, foi impedida de concorrer: tinha tido cerca de 90% dos votos nas primárias da oposição, o que revela a ampla aceitação (e o potencial de derrotar eleitoralmente o incumbente) que tinha.

A candidata da oposição foi então substituída por Edmundo González. Apoiado por aquela, podia equivaler-lhe no potencial eleitoral. Para tentar desmobilizar o eleitorado do opositar, gerando medo e limitando a liberdade de voto, Maduro aderiu a uma retórica de violência. Doze dias antes do acto eleitoral, falou na possibilidade de um “banho de sangue” e numa “guerra civil”, caso perdesse as eleições.

Não eram palavras vazias. Maduro sabia o que estava a dizer a respeito da violência. Embora sem o alcance de uma guerra civil, houve violência. Muita violência. Detenções nas filas para votar. Duas mil e quatrocentas detenções por terrorismo sem acusação nem julgamento (entre as quais mais de 100 crianças, algumas com deficiência). Vinte e cinco mortos (confirmados), na maioria jovens de bairros populares.

A probabilidade de o incumbente ter ganhado as eleições é muito baixa. Primeiro, pelas várias iniciativas de manipulação eleitoral. Segundo, porque a CNE anunciou a “vitória” de Maduro sem publicar os resultados das mesas eleitorais. Depois, porque a relutância de Maduro em publicar a totalidade das actas eleitorais é “basicamente uma confissão de trangressão”.

Por outro lado, a missão de observação do Carter Center, aceite no país, declarou o óbvio: as eleições não cumpriram os mínimos democráticos. Houve limitações à liberdade, parcialidade das autoridades e abuso dos meios do estado. Finalmente, foi ainda feita uma tabulação paralela independente que indicou um resultado semelhante ao que era avançado pela generalidade das sondagens: mais de 60% dos votos para a candidatura da oposição.

No fundo, perante a possibilidade iminente de perder o poder, Maduro decidiu optar pela fraude e pela violência eleitoral. Usou bem do “menu de manipulação” e, no rescaldo da fraude, reforçou a repressão para manter a (i)legitimidade do seu governo, provocando a morte mais de duas dezenas de pessoas, detendo milhares de venezuelanos (e vários estrangeiros) sem acusação, surgindo casos de violência sexual e de prisão de crianças.

Maduro estava diante do tudo ou nada. Por isso, precisava de se agarrar ao poder. Mesmo que isso significasse aumentar a repressão, abusar do aparelho do estado e atropelar direitos humanos (por vezes esquecemo-nos de que a livre expressão das preferências políticas também é um direito humano). O caos internacional que vivemos (sobretudo com guerra no Médio Oriente e na Ucrânia) dão-lhe o ar necessário que precisa para respirar. Até quando? Não sei. O que é certo é que as vozes dos venezuelanos que saíram do país, agora e outrora, já não se ouvem.