Não vou demorar-me no episódio recentemente mediatizado do rei D. Juan Carlos I, que protagonizou a restauração da Monarquia em Espanha e que, nessa qualidade, a partir da morte do Generalíssimo Franco, chefiou o Estado espanhol. É uma história humana, demasiadamente humana, uma história de paixões, comissões, honra e pratos de lentilhas que, mesmo na mais benigna das versões, não pode deixar de manchar alguém que, por nascimento, vida, condição e função, não devia ceder a fraquezas e deslumbramentos. Mas que alegadamente cedeu, fragilizando, com isso, um regime, uma dinastia e a segurança de um Estado. Uma história oportunamente divulgada num momento particularmente crítico da vida de Espanha – atacada, como toda a Europa, pela pandemia, enfrentando desafios de fragmentação e secessão na Catalunha e estando politicamente quase tão bipolarizada e radicalizada como há 80 anos.
Recordemos alguns factos.
Nos anos 30 do século passado, a Europa estava dividida ideologicamente em três ou quatro tipos de regime. No extremo leste, a confrontar com a Ásia, havia a Rússia comunista de Estaline, onde começava o grande terror: na Ucrânia, o celeiro da URSS, a política de Moscovo estava a matar à fome, intencionalmente, alguns milhões de camponeses; e no interior da URSS, Estaline, o Partido Comunista e a polícia secreta começavam as purgas no Partido e a construção de um sistema repressivo concentracionário que mataria milhões de russos, entre eles altos dirigentes comunistas, civis e militares. Este Terror Vermelho, que liquidou no tempo de Lenine e da Revolução a classe alta russa e parte das nascentes classes médias, ameaçava então o resto da Europa, através dos partidos comunistas europeus e das suas toupeiras – instaladas, inclusive, nos serviços secretos britânicos. Sem esta ameaça, as batalhas de rua entre os fascistas e os comunistas e socialistas revolucionários e a vitória do Fascismo em Itália, em 1922, é inexplicável. E o triunfo do Fascismo despertou o nascimento de partidos nacionais revolucionários um pouco por toda a Europa.
Ao lado destes partidos, e também contra a ameaça comunista, vários Estados constitucionais, dos Balcãs e da Europa Oriental, militarizaram-se, recorreram à ditadura, instauraram regimes autoritários e anti-partidários, como aconteceu em Portugal – embora por cá as razões também fossem outras. Mas na Alemanha, foi em nome da reparação das humilhações de Versalhes e também para combater o comunismo que o Partido Nacional Socialista de Hitler chegou ao poder por via eleitoral.
A Espanha, que passara nos anos vinte pela ditadura do general Miguel Primo de Rivera, apoiada pelo rei Afonso XIII, entrou em crise depois da queda do ditador. Em 1931, um plebiscito monarquia-república levou Afonso XIII de Borbón a abandonar o trono e a fixar-se em Itália. A esquerda activista e os separatistas reagiram ao governo de centro-direita, eleito popularmente em 1934, com a revolta das Astúrias. E em Fevereiro de 1936, numas eleições bipolarizadas, a Frente Popular, juntando os partidos de esquerda e os separatistas, ganhou a maioria.
Os anarquistas e sindicalistas revolucionários iniciaram, imediatamente, uma onda de grande violência, com ocupações de terras, queima de igrejas e assassinato de adversários políticos. Do lado da direita, respondeu-lhes uma organização fascizante, a Falange, de José Antonio Primo de Rivera. Mas a escalada levou parte do Exército, essencialmente o Exército operacional de África, a revoltar-se. O general Franco, quer pelo seu carisma entre as tropas de Marrocos, quer pelo desaparecimento de outro chefes militares alternativos, como o general Sanjurjo e o general Mola, acabou por ser escolhido pelos seus para líder militar e político dos Nacionais. E conseguiu, durante o conflito, a unidade das direitas políticas e combatentes: falangistas, monárquicas carlistas e constitucionais borbónicas, católicas e republicanas conservadoras.
A guerra foi brutal e, de parte a parte, houve excessos, massacres, selvajarias. Os Vermelhos, sobretudo os anarquistas, assassinaram cerca de 7 000 padres e religiosos e impuseram o terror nas zonas que controlavam. A resposta também não foi branda.
Salazar apoiou Franco desde o início, tendo a noção de que uma vitória da Frente Popular significaria Estaline e o terror comunista em Madrid – e depois em Lisboa.
Franco venceu e, a seguir, dezenas de milhares de inimigos do regime foram presos, exilados, mortos. Valeria a pena comparar em números absolutos e relativos o que Franco fez em Espanha e o que os comunistas fizeram na Rússia, após a vitória na Guerra Civil. Mas deixemos essas estatísticas que sempre incomodam os “bem-pensantes”.
Depois, à medida que se tornou mais segura a situação, o franquismo, um regime ambíguo em que Franco era o “Caudilho de Espanha pela Graça de Deus” e que, constitucionalmente não era nem uma República nem uma Monarquia, foi-se consolidando e foi baixando, consequentemente, a repressão. Mas ainda em 1950 havia guerrilhas comunistas a infiltrar-se em Espanha. Depois, nos anos sessenta, à semelhança do que sucedeu em Portugal, as políticas desenvolvimentistas transformaram a Espanha, criando uma classe média e eliminando as condições sociopolíticas das “duas Espanhas”, a dos ricos e a dos pobres. Também o regime autoritário foi abrindo aos elementos conservadores liberais e tecnocráticos, que bateram progressivamente a ala falangista.
Franco seguiu uma política oposta à de Salazar nas relações com a classe política e na preparação da sucessão, permitindo, e até estimulando, facções entre os políticos que, inclusive, se digladiavam. Assim os manteve activos, mobilizados e aptos para a luta.
É de 1947 a lei da sucessão, conseguida depois de um intrincado tricot político-jurídico e de várias escaramuças entre os seus partidários – sobretudo com D. João, conde de Barcelona. E assim Franco restaurou ou instaurou a monarquia espanhola, criando um sistema de sucessão para o seu regime pessoal. O sistema assentou na instituição monárquica, personalizada na figura do Príncipe D. Juan Carlos. Este, para aceitar, teve de fazer escolhas difíceis, nomeadamente entre o afecto e o respeito filiais pelo pai, D. João, conde de Barcelona, e Franco e os seus projectos. Conseguiu sobreviver e equilibrar os dois lados recebendo as lições de arte e astúcia política que tanto o pai como Franco lhe proporcionaram.
Franco teve o mérito de planear e acompanhar a sua sucessão. Segundo me contou o general Vernon Walters em Washington, muitos anos depois, o Caudilho sabia perfeitamente que acabara com o dualismo das duas Espanhas e que a Espanha, depois da sua morte, seria uma monarquia constitucional e democrática. Tinha até sublinhado com ironia, falando com Walters, que tal democracia, ainda que pudesse vir a não ser boa para a Espanha, seria certamente do agrado de Walters e do presidente Nixon; e que poderiam ficar sossegados que a transição estava “atada e bem atada” e que a Espanha que ele deixava seria pró-ocidental e pró-americana.
- Juan Carlos recebeu a herança de Franco e foi gerindo um dia a dia difícil, entre os franquistas ortodoxos, que se opunham à liberalização, e a pressão externa e interna das forças de esquerda. Como herdeiro de Franco, tinha a lealdade dos militares e para a maioria dos franquistas era o garante da evolução na continuidade; para as esquerdas, era o chapéu-de-chuva que as protegia de um golpe militar que parasse a abertura – como sucedeu no momento crítico do 23-F de 1981 protagonizado pelo assalto ao Parlamento pelos Guardas-civis do tenente-coronel Tejero de Molina e pela divisão blindada Brunete do general Milans del Bosch. É uma história complicada, mas, nesse dia, D. Juan Carlos terá salvado a Democracia de um golpe para-ditatorial.
Foi assim que o Rei protagonizou uma transição difícil, com a ETA a matar civis e militares em toda a Espanha e o presidente da Generalitat, Jordi Pujol, na Catalunha, a montar pacientemente as condições para uma futura secessão, impondo a hegemonia da língua catalã e criando bases financeiras e institucionais para a independência, com a conivência dos partidos governamentais em Madrid que precisavam dos votos dos partidos catalães.
D. Juan Carlos foi um rei popular e, nas qualidades como nos defeitos, na segurança como nas fraquezas, próximo dos seus compatriotas. Conseguiu, com habilidade e até rasgo, manter a unidade da Espanha graças também à rainha, D. Sofia. E como Franco criara as condições que tinham acabado com as duas Espanhas económicas e sociais, Juan Carlos criou um espaço de conciliação entre as duas Espanhas políticas.
Depois vieram as quedas: a caçada ao elefante no Botswana, o romance com Corine Larsen, espécie de Montespan ou Pompadour dos nossos dias, a vulnerabilidade perante os milhões sauditas.
Agora, os dados estão lançados. O rei Filipe VI, que já tinha tido o problema do cunhado e da irmã, e que já tinha renunciado a quaisquer heranças financeiras do pai, não pôde nem pode renunciar a esta herança política. Tem pela frente a esquerda radical e agressiva do Unidas-Podemos que, abalada pelas próprias confusões de dinheiros sujos da ditadura venezuelana e casos complicados do seu líder Pablo Iglesias, se mostra particularmente interessada em derrubar a monarquia. Tem o separatismo catalão e os seus líderes prontos a explorar a vulnerabilidade da Coroa e um PSOE com um dirigente bem diferente de Filipe Gonzalez, que tinha sentido de Estado e que pesava os riscos das fracturas institucionais para um Estado plurinacional.
A questão catalã é, neste momento, a de maior urgência e impacto e a crise aberta pelo caso do Rei Emérito agravou o problema, enfraquecendo o papel da coroa como poder arbitral. É difícil fazer contas aos números de independentistas e unionistas catalães, mas neste momento devem estar equilibrados, o que torna ainda mais difícil a solução. A opção pelo referendo, que parece ter o apoio, não só dos independentistas mas também de parte dos unionistas catalães, levanta uma objecção de princípio na medida em que põe em questão a unidade do Reino de Espanha. E com um partido nacionalista espanhol como o Vox, terceira força política do país presente no parlamento e na rua, nem o PP nem o Ciudadanos se poderão afastar de uma política unitária.
Perante os riscos de ruptura, o próprio Pedro Sanchez se viu na obrigação de afirmar claramente o apoio do PSOE e do Governo à instituição monárquica, mal-grado a agressividade dos seus colegas de governo do Unidas-Podemos e da consciência de que parte dos eleitores socialistas, sobretudo os mais jovens, são republicanos e não viveram os anos difíceis da transição.