Schlimmer geht immer” dizem os alemães, o que traduzido significa que as coisas podem sempre piorar. Dei por mim a pensar que esta pérola de sabedoria germânica de facto é mais certa do que esperava quando li que o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia propõe diminuir o número de médicos especialistas das equipas de urgência. Eu também sei o porquê. Sim, eu sei que os médicos fogem do SNS como o diabo da cruz (e para além disso aqueles malandros atrevem-se a reformar-se) e que há que manter as urgências abertas na mesma. Também há que tratar de tornar os médicos internos o mais rápido possível em especialistas a todo o custo, dando-lhes a “oportunidade” de ser autodidatas nas urgências, qual cão que se passeia a si mesmo segurando a trela com a boca. Qualidade na formação? Ser acompanhado por especialistas na execução dos atos médicos? Se eles fizerem uma cesariana uma vez já estão prontos para a vida de obstetra, é sempre a mesma coisa, não é?

Qual o mal de pôr o interno ou o especialista a fazer um biscate a mais aqui e acolá, um parto express no primeiro piso, uma gravidez ectópica na urgência, etc., de correr tudo bem certo? Isto fazme lembrar o tipo de raciocínio que já cheguei a ter em criança quando fazia os trabalhos de casa no intervalo antes da aula e, sem surpresas, o resultado era vergonhoso. Depressa ganhei juízo. Mas neste caso o Colégio parece estar a perdêlo. Estamos a falar de vidas, de saúde, o bem mais precioso que temos. De situações em que a segurança de todos os envolvidos tem de estar em primeiro lugar.

Por outro lado, pode ver-se esta notícia como a confirmação da crença mitológica e popular do médico como poder superior e criatura divina, omnipotente e omnipresente. Tomem lá aqueles que acusam os médicos de serem narcisistas convencidos! Se não somos assim tão bons como poderiam estes meros humanos fazer partos a torto e a direito, em todo o lado e ao mesmo tempo? Quiçá até em pensamento? Isso é coisa vinda do reino de São Pedro. Provavelmente o mesmo sítio onde o ditocujo médico vai parar se tentar manter um ritmo assim por algum tempo. Provavelmente o mesmo sítio onde várias pacientes vão parar se esta ideia for para a frente.

Esta proposta é aceitação radical entendida por indivíduos pouco dotados. A situação é uma catástrofe, o desespero instala-se, as mulheres continuam a atrever-se a existir e a precisar de ir às urgências. O que fazer? Manifestar-se e exigir melhores condições no SNS para travar o desenvolvimento preocupante a que assistimos e que põe as portuguesas em perigo real de perecer por falta de assistência médica de qualidade? Sensibilizar a população para esta realidade de modo a que também ela lute ao lado dos profissionais de saúde? Não, isso é muito difícil, dá trabalho, demora muito tempo, etc.. Não, o Colégio prefere resignar-se e reduzir os padrões de tal forma, brincando com o fogo, que corre o risco de que a corda que já está esticada rompa de vez.

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Mas porquê parar por aqui, com o aumento do número de partos por equipa médica? que ser criativo e pensar nas inúmeras possibilidades para ajustar os padrões dos cuidados de saúde que se coadunam com a situação medieval presente. Para os fãs do eufemismo diria que se trata de um “regressar às raízes”. Vamos ter as crianças em casa como nos tempos das nossas avós com uma parteira sem formação, mas que já “viu muitos nascimentos” e se a coisa der para o torto rezamos e chamamos o padre. Quiçá aplicamos algumas sanguessugas para curar a febre e a hemorragia (eu sei que no segundo caso se calhar não faz muito sentido, mas os antigos diziam que equilibrava os humores).

Onde está o mal? Afinal de contas as gerações passadas sobreviveram a tais condições. A esperança média de vida chegou a ser por volta dos quarenta mas não nos prendamos a tais pormenores. Na verdade, até podemos ver isto como um ponto positivo. Quanto mais depressa morrermos menos vezes vamos ter de sofrer a humilhação de ser tratados como mercadoria humana descartável.

Enfim, parece que o vintage está in. Infelizmente a vergonha e a responsabilidade estão definitivamente out. Assim se vai vivendo (e morrendo).