A mais persuasiva descrição da democracia norte-americana caracteriza-a como animada por um impulso igualitário inexorável (impulso que todavia coexiste com flagrantes desigualdades de facto: económicas, por exemplo). Acontecimentos políticos recentes parecem expor como ficcional esse impulso, ou, pelo menos, como passível de ser definitivamente contrariado. O movimento de reversão de muito daquilo que habitualmente se associa a uma democracia liberal acaba de ser sufragado por uma maioria de eleitores que parecem ter jovialmente escolhido prescindir da neutralidade procedimental do sistema político. Ninguém pode ter uma percepção certa do desfecho eventual desta deriva amoral e enérgica, apesar de dispormos de descrições muito precisas de invariantes norte-americanos característicos deste tipo de prática política (o ensaio de Emerson, Power, de 1860, por exemplo, onde até mesmo a invasão do Congresso se prevê).

Uma das dificuldades de avaliarmos, de um lugar exterior, acontecimentos políticos desta natureza muitas vezes resulta de não sermos propriamente seus contemporâneos. Traduzir para português a frase inicial da Declaração de Independência norte-americana, “We, the people”, por exemplo, poderá parecer um exercício trivial, mas o enunciado que daí decorre revela-se, de facto, ininteligível.

Em Portugal, “povo” nunca foi sujeito de frase, excepto no empíreo abstracto das disposições constitucionais ou legais. A palavra “povo” foi sempre, em vez disso, objecto de discurso, complemento directo. Os exemplos abundam: “tu sabes como é o povo português”, frase a que muitas vezes se recorre como explicação de qualquer facto que nos desconcerta ou desaponta, ou “o povo tem uma sabedoria profunda”, cumprimento feito quando nos agrada um inesperado resultado eleitoral. Há sítios onde alguém nos diz ter visto muito “povo”; há pessoas que alguém nos explica serem o que são por, de facto, virem do “povo”; tal como há quem, entrevistado na televisão por ter testemunhado um incidente de rua, seja identificado como um “popular”.

Este altivo desdém histórico revela-se de diversos modos. Foi flagrante, por exemplo, a partir da década de 60 do século passado, no discurso generalizado sobre os “emigrantes” (os nossos, não os que hoje para cá imigram). As suas casas desfiguravam os campos, ofendiam o gosto de muitos de nós para cujo olhar crítico qualquer outra arquitectura ou desolada área urbana era paradoxalmente invisível (como fora invisível a habitação em que, antes de saírem do país, essas pessoas viviam).

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O acinte de classe que estes exemplos revelam muitas vezes coexiste com claras convicções democráticas. Mas as dissonâncias criadas pela coexistência impensada desse acinte e dessas convicções não deixam de ser reais. Defensores de alterações do sistema eleitoral português, por exemplo, justificam-nas, persuasivamente, pela necessidade de criar laços mais estreitos entre eleitores e eleitos, de introduzir modos de representação mais adequada e fiel. Mas muitos dos que as defendem adoptam um tom zangado quando encontram um exemplo efectivo desse tipo de representação, como foi o caso do processo de aprovação do chamado orçamento “limiano”, em que o deputado responsável pelo voto foi universalmente aplaudido pelos seus eleitores e deplorado por todos os analistas.

Dissonâncias análogas afectam a nossa percepção dos acontecimentos norte-americanos recentes. A incessante pressão igualitária que Tocqueville reconheceu como invariante decisivo da democracia norte-americana traduziu-se, nas últimas décadas, numa agenda múltipla, mas afim, que posições políticas antagónicas diferentemente criticam. Essa agenda múltipla é o adquirido social e político mais profundo das últimas décadas. Num outro lugar, procurei descrever o que parece determinar essa agenda e quais as suas condições de emergência. Transcrevo, de seguida, essa breve descrição, que nada tem de inédito, para depois concluir com uma conjectura sobre a tendência desse estado de coisas.

A descrição parte do reconhecimento do papel decisivo da pressão igualitária que referi. A composição social norte-americana é a de grupos constituintes muito vocais e activos. O seu processo de formação é análogo. Alterações demográficas ou identitárias, em que um grupo se consegue definir como tal, pelo número e pela capacidade de o traduzir politicamente, levam-no a exigir reconhecimento. É esse o caso de cidadãos norte-americanos originários de imigração da América Central e do Sul, que se constituíram como etnia “hispânica”, ou do movimento homossexual, em que um segmento significativo da população se dessolidarizou do modelo heterossexual normativo, que via como viciosamente compulsório, e soube federar uma identidade íntima num conjunto social amplo.

Cada grupo emergente exige mentores e descrições de si mesmo, pública e curricularmente disponíveis, que incrementem a sua estima e reflictam a sua difícil emergência. A exigência que faz é pragmática: pretende um lugar à mesa, sentar-se ao lado dos que, há muito, entre si repartem o produto socialmente disponível de bens e direitos. A repartição que exige não é platónica, mas espera resultados tangíveis, fiscais e de acesso institucional e político, por exemplo, que, aliás, obtém, pela cooptação de que é alvo, logo que socialmente percebido como dispondo da força do sufrágio. Um objecto comum é, assim, substituído por uma adição de particularismos.

Uma conhecida, e persuasiva, descrição histórica daqui decorre. Se, no século XX, o desenvolvimento político decisivo foi a emergência dos direitos civis, pós-coloniais e “étnicos”, da emancipação da mulher e das minorias sexuais (e, eventualmente, dos animais como portadores de direitos, tornando concebível, a prazo, o vegetarianismo compulsório), estas virtuosas agendas emergentes podem ser graficamente descritas como um anel cujo centro negativo é ocupado por uma criatura tornada comicamente arcaica e privada das formas de domínio de que historicamente dispôs, bem como da particular forma de grandeza que foi sua: a figura totémica, crivada de tabus, do paterfamilias, que foi “homem”, “heterossexual” e “branco”. O ganho histórico daquelas agendas emergentes coexiste, pois, como sempre acontece, com um conjunto de perdas. A origem norte-americana de todas estas tendências emancipatórias nem sempre, no entanto, é notada.

Este compósito estado de coisas descreve a natureza “liberal” da sociedade norte-americana, e, embora traços e práticas significativos dela tenham sido recentemente erodidos, como é o caso da legislação permitindo o aborto, há outros traços e práticas que parecem definitivamente naturalizados, sendo a sua reversão improvável (veja-se, por exemplo, como figuras republicanas como Newt Gingrich ou Dick Cheney se colocaram face ao lesbianismo da irmã e da filha).

O resultado das recentes eleições presidenciais parece reflectir a reacção da criatura “patriarcal” que defini acima como privada do domínio de que historicamente dispôs, face à sua crescente despossessão. As agendas minoritárias emergentes que afrontam esse domínio caracterizaram-se, em anos recentes, pela imposição de formas de falar e de expressão social e política fortemente coercivas, qualquer desvio de linguagem requerendo a prática de um ritual de expiação pública por quem o cometesse.

Foi esse tipo de conduta socialmente esperada que os comportamentos vulgares e crus do candidato republicano repetidamente violaram, e encontraram eco em quem ressentia essa imposição de formas de linguagem e comportamento socialmente aceitáveis. Sendo o peso da opinião pública determinante na sociedade norte-americana, assistimos agora à progressiva normalização de posições até há pouco caracterizadas como inadmissíveis. Esta reposição de equilíbrio corresponde a um movimento social profundo, que, sendo real, pôde aceder à expressão porque um demagogo soube cavalgá-lo, ou foi capaz de o suscitar (e é o ponto final de uma bem-sucedida estratégia do Partido Republicano para obter um domínio político durável, iniciada, em 1964, com a campanha de Barry Goldwater que, sabendo que perderia a eleição para Lyndon Johnson, afirmou então que não concederia a vitória ao adversário, mesmo em caso de derrota nas urnas).

Se a descrição de Tocqueville estiver certa, o que se desenha nos Estados Unidos é um momento crítico na história desse impulso igualitário, crise que poderá ser superada pela recomposição demográfica do país, em que a população branca está a passar, nas duas décadas em cujo ponto médio nos encontramos, de claramente maioritária a minoritária (de cerca de 70% a pouco mais de 50%). Nos termos da descrição de Tocqueville, a progressão desse impulso igualitário deveria revelar-se dominante, mesmo se perturbada por episódios fortemente regressivos, de que é exemplo maior a recente eleição de um presidente cujo programa é o de um nativismo isolacionista, económica e socialmente iníquo.

Mas dificilmente se poderá prever a resolução deste confronto. Uma observação de Marx, fortemente desconcertante do messianismo marxista ulterior, é aqui apropriada quando, no Manifesto do Partido Comunista, depois de declarar que a “história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes”, e de fazer um inventário a traços largos das classes sucessivamente envolvidas nesses embates, conclui que cada uma dessas lutas “acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta”. Esta última possibilidade recessiva ou um retomado movimento de uma igualdade crescente parecem, pois, ser os braços do dilema corrente. Como, no entanto, as circunstâncias em que o confronto descrito ocorre são também as de uma crise ambiental que põe em risco a sobrevivência da espécie, qualquer exercício profético neste domínio é, mais do que habitualmente, fútil.

António Feijó é professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, instituição de que foi também diretor. Foi vice-reitor e pró-reitor da Universidade de Lisboa e é atualmente presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian. É membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.