Chego a Heylor, localidade final de uma pequena estrada com largura apenas para um carro. A única casa que avisto não é certamente a indicação que me deram 5 milhas atrás, para a bomba de gasolina mais próxima, quando estava já praticamente com o depósito vazio. Apenas avisto um cão. Receio ser mordido e anuncio-me a quem possa estar em casa antes de entrar. Ninguém responde. Avanço, insisto no cumprimento sem passar o portão enferrujado. Vejo máquinas agrícolas com aspeto de terem deixado de funcionar há décadas. O cão vem ter comigo. Fico parado, sem olhar para ele, dando-lhe as costas da mão a cheirar. A lambidela que me dá deixa-me a mão brilhante. Sinto a saliva do cão arrefecer rapidamente.

Uma mulher aproxima-se, logo atrás um homem. Falo pausadamente e explico-lhes que estou praticamente sem gasolina, que temo não conseguir chegar sequer à bomba mais próxima por me ter enganado no caminho. Explico donde venho, a viagem que faço. Fico a saber os nomes, Nancy e Stuart. Ela nasceu em Shetland, ele veio de Oxford. Talvez por isso lhes perceba tão bem o Inglês. Stuart fala lentamente, num tom de voz doce e frágil. Nancy também canta as palavras, diz que a bomba mais próxima fica em Hillswick, a três milhas, quase sempre a descer. Peço que me aponte no mapa. Stuart lembra-se então: “Ah, espera. Tenho ali um pequeno depósito com gasolina. Já o tenho há três anos e nem me lembrava.” Espero que a gasolina seja como o vinho, digo. Stuart aparenta não ter percebido a tentativa de piada, ou talvez sintam ainda mais estranheza no meu sotaque que eu no deles. Avança para uma arrecadação e volta com um depósito e um funil.

“Ficamos aqui a ver se a mota pega. Se correr alguma coisa mal, levamos-te a Hillwick.”, diz Nancy. Recusaram que lhes trouxesse o depósito cheio, recusaram qualquer tipo de pagamento.

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Talvez a diferença principal entre viajar e fazer turismo seja a forma de contacto que se estabelece com o outro, com quem habita o país para onde vamos, a sua cultura, e a sensação de vulnerabilidade que se tem nesse período fora de nossas casas. Que descoberta faz o turista que parte para um país desconhecido e se refugia num resort com alimentação incluída, com festas de karaoke e disco nights incluídas no pacote da agência? Que genuinidade local procura quando as incursões que faz numa cidade passam pelos roteiros turísticos onde todo o comércio e economia se moldou já a esta passagem de estrangeiros endinheirados, oferecendo-lhe serviços e produtos que, na melhor das hipóteses, são produções artificiais da imagem que os estrangeiros têm do país?

As experiências que mais me transformaram em viagem foram as de superação do medo, o reconhecimento de um lugar, outrora inóspito e desconfortável, como um local de paragem habitual e recomendado a amigos. Parte-se para os destinos com a mala cheia de preconceitos, medos emprestados, caminhos programados, mas só quando conseguimos largar esse lastro e nos permitimos olhar para o que nos rodeia sem filtros entramos numa nova zona de conforto e descobrimos algo novo.

Conquistar zonas de conforto na Escócia não é tão exigente como em Angola, no Brasil ou Moçambique, mas o medo do desconhecido é igual em qualquer parte do mundo. Um medo que pode existir também do outro lado, de quem está dentro da casa e vê um desconhecido chegar de mota.

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Noutra fase da viagem, parando em Castle Acre, a caminho do Norfolk, entro na igreja. Um homem saía, era o organista da igreja. Professor reformado, vem todas as semanas de Norwich, a 50 km de distância. Fez-me uma visita guiada à igreja, mostrando-me com orgulho o estado de conservação dos retábulos do séc. XIII, queria entregar-me a chave do piano para que eu pudesse tocar. “Deixa-a ali, naquela caixa, quando saíres.” Não teme deixar a igreja à guarda de uma pessoa que acabou de conhecer, perguntei. “Ama o próximo como a ti mesmo. Vi-te chegar de mota, percebi que vinhas de longe para ver a igreja, que fizeste um esforço grande para aqui chegar. Procuro encontrar Jesus em cada um de nós.”

Contei-lhe que vinha cheio de ideias feitas sobre a inacessibilidade dos ingleses, avisos sobre uma postura altiva, que tenho visto com felicidade serem boatos infundados e injustos. Em Newmarket quis assistir às corridas de cavalos e ter acesso ao paddock, poder estar próximo dos estábulos e dos jockeys para os fotografar e os sentir nos momentos antes da corrida. Entrei em contacto com o Mark Dwyer, relações públicas do Jockey Club. Não só foi bastante paciente com a minha falta de fluência no inglês como pareceu bastante empenhado em que eu pudesse fazer o que me propunha. Lamentou que eu tivesse vindo de t-shirt, contra o dress code das corridas. Ofereceu-me uma camisa branca, entregou-me um cartão de acesso à zona de imprensa, e lastimou várias vezes que eu não o tivesse contactado um dia antes para poder tratar do seguro de trabalho necessário para poder estar na zona do paddock e da pista. Quando lhe disse que não estava habituado a uma forma tão generosa de tratar este tipo de pedidos, que onde vivo costuma ser bastante mais burocrático e moroso, mostrou-se surpreendido. “Bem, nós tentamos facilitar a vida às pessoas.”

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Em Glasgow, no National Scottish Portrait Gallery, uma gravação com voz de mulher acompanha uma série de quadros. A língua é-me desconhecida. Aproximo-me de uma jovem que trabalha como segurança no museu e pergunto-lhe o que ouvimos. “É gaélico.” Sabes o que dizem? “Não, muito pouca gente na Escócia fala ainda esta língua.” Qual é a percentagem? “Uns 5%, 7% talvez, mas não me cite. Não tenho a certeza.” Sigo para outra galeria, a voz gaélica é misturada com a voz da rapariga no walkie-talkie de outro segurança. Pergunta se alguém sabe a percentagem exata. 5%, diz um. “Não, é muito menos do que isso”, responde outro. “Vou pesquisar na net”, responde finalmente outra voz feminina. Dois minutos depois oiço a jovem correr pelas galerias à minha procura. “1,1%!”, exclama com a alegria de quem ganhou o dia rompendo a monotonia de vigiar visitantes de museu, “Não fazia ideia que era tão pouca gente, quase todos no noroeste do país, e que de ano para ano são menos. Provavelmente extinguir-se-á como língua.”

Não sei se esta generosidade e vontade de responder às necessidades do outro é uma idiossincrasia cultural, uma forma de entender que a sociedade se torna melhor para todos quando damos tempo a quem nos procura, ou se poderá haver no viajante fora da sua zona de conforto uma energia de vulnerabilidade que suscita nas pessoas a vontade de proteção. Estou certo que encontraria exemplos semelhantes a estes na minha rua, caso precisasse. Mas a viagem coloca-nos numa situação diferente do nosso dia a dia. Talvez esta seja a principal diferença entre viajar e fazer turismo.

 

Tiago Figueiredo publica também #doladoesquerdodaestrada em tiagofigueiredo.com e instagram.com/tiagofigueiredo

A viagem de dois meses que faz no Reino Unido e Irlanda é apoiada por

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