“O biôco, este extraordinario biôco, é digno de chronica para esclarecimento e regalo do leitor estranho a esta região” (“O Algarve: notas impressionistas”)
Júlio Lourenço Pinto tinha razão. Sabe o que é o biôco? Se é daquelas pessoas que não gosta de pôr a perna ao léu, talvez seja uma ideia a considerar para o Carnaval. Ora cá vai uma explicação, dada por Raúl Brandão (em “Os Pescadores”, Porto Editora):
“É um trajo misterioso e atraente. Quando saem, de negro, envoltas nos biocos, parecem fantasmas. Passam, olham-nos e não as vemos. Mas o lume do olhar, mais vivo no rebuço, tem outro realce… Desaparecem e deixam-nos cismáticos. Ao longe, no lajedo da rua ouve-se ainda o cloque-cloque do calçado – e já o fantasma se esvaiu, deixando-nos uma impressão de mistério e sonho. É uma mulher esplêndida que vai para uma aventura de amor? De quem são aqueles olhos que ferem lume?… Fitou-nos, sumiu-se, e ainda – perdida para sempre a figura – ainda o som chama por nós baixinho, muito ao longe – cloque…”
Já está a visualizar? O biôco é um traje tradicional português, especialmente da zona do Algarve, que se assemelha muito a uma burka: um vestido longo que cobre o corpo da mulher da cabeça aos pés, deixando apenas visíveis esses “olhos que ferem lume”.
Não é caso único nas vestes tradicionais em território nacional. Nos Açores, por exemplo, até meio do século XX era característico as mulheres usarem o capote, um traje muito semelhante ao biôco, com a diferença de que o capuz, designado capelo, ser de maior envergadura. O mesmo Raúl Brandão, noutro livro, tem a palavra:
“A gente segue pelas ruas desertas, e, de quando em quando, irrompe duma porta um fantasma negro e disforme, de grande capuz pela cabeça. São quase sempre as velhas que o usam, mas as raparigas, metidas na concha deste vestuário, que pouco varia de ilha para ilha, chegam a comunicar encanto ao capote monstruoso. (…) Começo a achar interesse a este fantástico negrume e resolvo que devia ser o único trajo permitido às mulheres açorianas.”
Voltando ao biôco: segundo diversos blogues, o uso desta peculiar peça de vestuário foi proibido no Algarve por decreto do governador civil da região, em 1892. Era ele… Júlio Lourenço Pinto, o mesmo que, dois anos volvidos, assinava as palavras que abrem este artigo e parecia lamentar a regulação.
“E o biôco, indestructivel como as pyramides do Egypto que medem a sua existencia pela dos seculos, foi sacrilegamente banido dos costumes algarvios”, dizia, atirando a responsabilidade da proibição para a “influencia da opinião publica”.
A proibição, contudo, parecia desnecessária, pois já havia uma regulação que proibia as mulheres de andarem com a cara tapada. E essa lei tinha sido produzida mais de 200 anos antes, como explica Joaquim José Caetano Pereira e Sousa em 1827 na obra “Esboço de hum diccionario juridico, theoretico, e practico remissivo às leis compiladas, e extravagantes”:
“Pelo Decreto de 11 de Agosto de 1649, e Alvará de 20 do mesmo mes, e anno se prohibirão os rebuços das mulheres; e pelo outro Alvará de 6 de Outubro do mesmo anno se declarou que as mulheres devião andar com a cara descoberta, ou, havendo de trazer biôco, devião trazer o manto cahido até aos peitos”.
A verdade é que o decreto parece ter sido letra morta. Por um lado, o referido texto de Raúl Brandão é de 1922, havendo outros posteriores que referem o traje. Por outro lado, em 1920, a revista Ilustração Portugueza publicou uma reportagem intitulada “Algarve: Jardim da Europa”, onde o autor, por entre relatos idílicos de uma vida campestre hoje estranha àquela região, fala do biôco como uma realidade a desaparecer, mas ainda presente.
“A camponeza algarvia (…) não conhece o garridismo das cores hilariantes, e na cabeça, sobre o lenço escuro, estendido em ponta, põe a tampa androgina de um chapeu de homem. E em alguns pontos, como em Olhão, usa ainda o seu trajo antigo, a capa e o biôco que lhe imprimem agourentas aparencias de esfinge”, lê-se.