A grande rosa-dos-ventos no chão e o luminoso panorama da beira-rio não deixam perceber facilmente a verdadeira lufada de ar fresco que — por paradoxal que possa parecer — sobrevém da cave do Padrão da Descoberta (sua designação inicial, mais renascentista) onde está patente uma pequena mas surpreendente exposição “Os arquitectos são poetas também”, dedicada a José Ângelo Cottinelli Telmo (1897-1948) — co-criador do próprio edifício, na sua versão efémera e ligeiramente menor, só madeira e estuque.
O apreço dos responsáveis do Padrão dos Descobrimentos pela figura do seu arquitecto vai ao ponto de exibir no seu auditório, aos fins-de-semana, o recente documentário de António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira (Uma Vida Interrompida, 2013, 55′) sobre o realizador de A Canção de Lisboa, no qual intervém amiúde o arquitecto João Paulo Martins, o comissário desta exposição que dedicou em 1995 a sua tese de mestrado a Cottinelli (ainda inédita), beneficiando do acesso ao seu espólio, actualmente conservado no forte de Sacavém, onde aguarda inquirições. Vários documentos expostos vieram de lá.
Arquitecto-chefe da Exposição do Mundo Português, Cottinelli pode e deve ser colocado, sem favor, ao nível de Almada Negreiros (de quem se revelam desenhos ainda inéditos na Fundação EDP, ali perto) pela sua excepcional e precoce criatividade multimédia, ou de Leitão de Barros e Carlos Botelho, dois outros enormes, polifacetados e prolixos talentos artísticos — aliás muito subestimados —, e com quem mais fez o seu caminho, desde que frequentaram juntos o Liceu Pedro Nunes e a Escola de Belas-Artes na década de 1910.
Em Fevereiro de 1917, meses antes de a companhia de Bailados Russos de Diaghliev ter aberto uma fina e breve brecha civilizacional na pasmaceira lisboeta — um desenho inédito sobre esses bailados é, precisamente, uma das surpresas da exposição —, Leitão de Barros publicou na efémera e esquecida revista Sphinx (Esfinge) um elogio de José Telmo, chamando-lhe “grande Fenómeno de Arte”, “desenhador, poeta, actor, diseur e músico”, “em tudo original, em tudo interessante e profundo, em tudo um grande esteta da Cor, do Som e da Vida. […] Fixem-lhe o nome, esperem-no impacientemente”.
É verdade que ele havia desenhado a capa, as vinhetas e o cartaz de lançamento da revista, e haveria de fazer o grafismo de livros de amigos, como Fernanda de Castro e Augusto de Santa-Rita (com colagens de papel colorido recortado), ou concebido o ex-líbris de José Osório de Oliveira, como haveria de dançar a réplica almadense de Diaghliev (1918), mas foi com os seus precursores trabalhos em banda desenhada (1921-29) que começou a dar provas maiores da sua imparável verve artística e literária.
Em 1999 a Bedeteca de Lisboa reconheceu a importância da sua obra gráfica, que todos admiram como fundadora da banda desenhada no nosso país, dedicando uma exposição e um álbum ao seu trabalho de direcção e de criação no ABCzinho, o suplemento infanto-juvenil duma revista mensal feita por modernistas no qual publicou pranchas com as aventuras inacreditáveis do “tio Pirilau que vendia balões”, “A grande fita americana” e “Letras e comércio”, exuberâncias de um humor divertido e doce, ou “negríssimo”, como aponta Jorge Silva no seu “Almanaque Silva”, referindo-se à História do Chocolate SIC, uma paródia à história de Portugal (1921).
Foi um primeiro mas hoje já distante passo na revelação, ou valorização, de um artista cujo destacado desempenho profissional ao serviço do abominado Estado Novo — ainda que à parte progressiva dele… — bastou para que fosse lançado no limbo dos proscritos. Autêntico faz-tudo, Cottinelli concebeu ainda o pavilhão do ABCzinho numa feira no parque do Estoril, foi autor e ilustrador de livros de aventuras, ou imaginou jogos e construções de armar, entre as quais uma jazz-band.
O seu interesse por cinema levou-o a associar-se, com apenas 21 anos, à criação de uma produtora-distribuidora, e a escrever e desenhar para magazines como Kino. Na exposição podemos ver um desses desenhos, o delicioso “estudo anatómico” de Charlot como autómato de Chaplin… Mas foi mais além: arquitecto do primeiro estúdio da Tóbis, construído em 1932, e sem querer fazer carreira cinematográfica (iria rivalizar com o seu próprio cunhado e grande amigo, Leitão de Barros…), escreveu o argumento e realizou no ano seguinte a inesquecível A Canção de Lisboa, juntando amigos num divertimento irrepetível que, além de ser o primeiro filme sonoro produzido no país e ajudar decisivamente a formar uma geração de técnicos portugueses de filmagem, som e montagem, gerou receitas que pagaram o edifício na Quinta das Conchas…
O genérico deste filme (uma criação de Almada Negreiros) começa, aliás, com imagens da Estação Fluvial do Sul e Sueste, que como arquitecto da CP Cottinelli concebera em 1929 e só foi inaugurada em Maio de 1932, demasiado tarde para fazer de Lisboa o «cais da Europa» (como no seu vibrante cartaz de 1927, igualmente exposto) donde o turismo internacional se dirigisse à Exposição Ibero-Americana de Sevilha por Vila Real de Santo António, cuja estação ferroviária, mais tardia ainda, é tida como um dos seus melhores trabalhos no género. O apeadeiro Setúbal-Quebedo, em xadrez de azulejos azuis-índigo e brancos, foi uma pequena jóia de modernidade e ícone da renovação da paisagem ferroviária portuguesa que ele protagonizou.
Na exposição de Belém, um amplo painel cronológico e geográfico indica-nos a diversidade dos seus projectos de arquitectura, nem todos edificados, que aumentaram exponencialmente ao serviço do Ministério das Obras Públicas, dirigido por Duarte Pacheco. A especial empatia entre estes dois inquietos haveria de ser o motor e o combustível do exigentíssimo canteiro de obras e vasto mercado de trabalho para decoradores-cenógrafos, arquitectos e designers que foi todo o empreendimento da Exposição do Mundo Português, em 1940, sem dúvida uma grande obra de propaganda do regime, mas certamente também uma operação decisiva para a indispensável regeneração e requalificação duma faixa ribeirinha nobre, pela proximidade do mosteiro dos Jerónimos e da torre de Belém.
Além disso, para Cottinelli, como sublinha Margarida Acciaiuoli (1998), a efemeridade do evento abria espaço para a especial experimentação dos artistas, seguindo o princípio telmiano de que “pobre daquele que não encontre no passado alguma coisa para demolir”. A historiadora da arte também reconhece que o arquitecto-chefe convocou “praticamente toda a mão-de-obra disponível da classe, independentemente de credos, de convicções e de maneiras de exercer o ofício”, “numa amálgama de colaborações que não deixa de ser surpreendente pelo seu ineditismo e pelo seu lado patriota”. Incansável, talentoso, Cottinelli ainda conseguiu dedicar-se ao Pavilhão dos Portugueses no Mundo, elogiado como o melhor de toda a exposição…
Haveria de escrever nos anos seguintes crónicas, crítica de arte, ensaios e palestras sobre arquitectura e sociedade (donde vem a frase que dá título à exposição), que só pelo triste facto de nos faltarem grandes editores nunca foram reunidos em livro, e como presidente do Sindicato dos Arquitectos promoveu o primeiro, decisivo e um pouco turbulento congresso da classe, em 1948, conseguindo que as comunicações pudessem ser apresentadas sem censura prévia.
Que esta pequena mas nobre exposição seja o degrau para uma maior e mais completa, que a figura única de Cottinelli Telmo amplamente justifica e merece.