É a história enigmática de uma menina chamada Alice que se embrenha num sonho onde se cruza com criaturas incoerentes e contraditórias. Mas é também uma narrativa com 150 anos onde se disserta sobre a psicologia e o cérebro humano. Afinal, há mais no País das Maravilhas do que se julgava no século XIX: no conto de Lewis Carroll, a celebrar 150 anos, que inspirou todo o universo artístico, está o Freud da psicanálise e as experiências mentais da contemporaneidade. A BBC leva-nos nessa viagem psicanalítica até à mesma toca de coelho onde caiu Alice.
Alice e a micropsia
Se me fizer crescer, posso recolher a chave; e se me fizer encolher, posso deslizar por baixo da porta. Então de qualquer maneira vou entrar no jardim, não importa o que acontecer!
Em 1955, o psiquiatra John Todd recebeu várias pessoas que sofriam de um problema neurológico que afeta as crianças. Que, mais tarde, foi também identificado pelo neurologista Grant Liu. Este último contou que teve pacientes que diziam estar de cabeça para baixo ou próximos a alguém que, na realidade, estava do lado oposto da sala. Estas perceções serão provocadas por uma atividade anormal nos lóbulos parietais, mas que não são nocivas para o indivíduo.
Será que Alice sofria desta lesão no cérebro que lhe afetava a perceção espacial? Os cientistas puseram agora esta hipótese. Ela reflete-se quando a menina loira se depara com a necessidade de fazer uma escolha: beber um líquido que a diminuirá até aos 25 centímetros ou comer um bolo que a fará crescer até ao teto. Uma teoria que não caiu do céu: os diários de Lewis Carroll revelam que o escritor sofria de enxaquecas, que são um dos sintomas de micropsia.
Metamorfoses durante um sonho
Desta vez não havia motivo algum para se enganar: era nada mais, nada menos que um porco. E Alice percebeu que não podia prosseguir este assunto durante mais tempo.
Há algo de kafkiano em Alice: em muitos momentos do conto, as coisas mudam de forma. Exemplo disso é a Duquesa e o seu bebé: quando a menina carrega a criança no colo, os olhos do bebé mudam e ele para de chorar para começar a roncar. E de um momento para o outro, Alice tem nas mãos um leitão. Na mesma lógica, Alice consegue jogar criquete com um flamengo em vez de um taco e chega até a conhecer um gato cujo sorriso não se desvanece ao mesmo tempo que o corpo do animal.
De facto, durante os sonhos é comum a sensação de que o tempo atrofia e que os objetos mudam de aspeto ou de funções. Os neurocientistas justificam esta perceção com a necessidade cerebral de consolidar as memórias durante o sono, o que resulta numa encruzilhada que transporta o indivíduo para o surrealismo.
Uma questão de semântica
“Era briluz. As lesmolisastouvas
roldavam e reviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.”
(tradução de Augusto de Campos)
Bonito, mas difícil de entender. É assim que Alice recita o poema surrealista “Jabberwocky”, composto para refletir sobre a natureza do discurso. A correção gramatical contrasta com a falta de sentido de cada palavra. Mais uma vez, o autor do conto parece estar 150 anos à frente no tempo: hoje, o poema é utilizado pelos neurocientistas para provar que o significado e a gramática são processados de forma independente pelo cérebro.
Mas o que tem a ciência a dizer sobre a natureza das palavras? Esta questão também não passou ao lado de Carroll: é nesse sentido que o autor introduz Humpty Dumpty a Alice.
– O meu nome é Alice, mas…
– Que nome mais estúpido! – interrompeu com impaciência Humpty Dumpty – O que significa?
– Um nome tem de significar alguma coisa? – perguntou Alice timidamente.
– Claro que sim! – disse Humpty Dumpty com um riso seco – O meu nome significa exatamente a forma que eu tenho (uma forma, por certo, muito formosa). Tu, em contrapartida, com um nome assim podes ter qualquer forma.
Platão já se havia perguntado sobre a natureza das palavras quando afirmou que a linguagem era um pharmakon, que funcionava como um remédio, um remédio ou um cosmético: potencia o diálogo, mas pode canalizar tanto o bem como o mal e até o incerto, resultando numa inadequação das palavras.
Durante algum tempo, os cientistas acreditavam que as palavras eram arbitrárias e que os sons delas não podiam ter um significado inato. Mas agora a ciência voltou a debruçar-se sobre o assunto e Humpty Dumpty pode mesmo ter razão.
A Rainha Branca e a noção de memória
– É um tipo de memória muito pobre a que só funciona para trás – retorquiu a Rainha.
– De que tipo de coisas se recorda melhor? – aventurou-se a perguntar Alice.
– Oh, as coisas que ocorreram na semana que vem depois da seguinte – respondeu a rainha num tom despreocupado.
A Rainha Branca e Alice partilham grandes debates no decorrer da história, principalmente porque a rainha diz ter uma grande capacidade de previsão.
Onde é que a ciência entra? “Desde meados do ano 2000, os neurocientistas começaram a dar-se conta que a memória não tem apenas a ver com o passado, mas também ajuda a atuar de forma apropriada no futuro”, explica a neurologista Eleanor Maguire.
Nós imaginamos o futuro de acordo com uma combinação de recordações baseadas no passado, porque a memória e a previsão “utilizam o mesmo tempo de viagem mental” nas mesmas áreas cerebrais. Prova disso é que as pessoas com lesões no hipocampo não conseguem recordar o passado, mas também têm dificuldade em projetar o futuro.
Pensar em coisas impossíveis
– Não vale a pena tentar – disse Alice -, não se pode acreditar em coisas impossíveis.
– Atrevo-me a dizer que não tens muita prática – respondeu a Rainha – Quando tinha a tua idade fazia-o durante hora e meia. Às vezes conseguia acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço.
Para a Rainha Branca, pensar e acreditar no impossível é uma virtude. Na verdade, segundo a psicóloga Alison Gopnik, as crianças que brincam ao “imaginar coisas impossíveis” acabam por desenvolver mais as suas capacidades cognitivas, entendem melhor o pensamento hipotético e compreendem as motivações e intenções alheias.
A história de Alice consegue ginasticar a mente de modo a torná-la mais flexível em pensamento. Esta é a conclusão de Travis Proulx, da Universidade de Tillburg, Holanda. Além disso, o cérebro torna-se também mais criativo e célere.