Entre a Fundação José Saramago, em Alfama, e a Casa-Museu Isabel e José, na Madragoa, distam cerca de três quilómetros andando por ruas antigas, irregulares, melancolicamente decadentes com o Tejo ali ao lado. Mas a distância a que cada uma está uma da outra não se conta em linguagem matemática. Conta-se (se se pudesse contar) nos milhares de detalhes visíveis e invisíveis de que é feita a vida humana; escolhas, afetos, amores, desamores, encontros e desencontros. O caminho entre as duas “casas” de Saramago é, pois, um espaço aberto à imaginação e à nostalgia dos que as visitam.
E se hoje, cinco anos após a morte do escritor, a Fundação, na antiga Casa dos Bicos, representa a face visível e institucional do Nobel, comandada pela sua última mulher, Pilar del Rio, a Casa-Museu Isabel e José é um espaço (quase) secreto, íntimo, que luta para “não se apagar Isabel da Nóbrega da história”. Quem o diz é o arquiteto e artista plástico Tomás Colaço, o mentor desta Casa-Museu, no seu blogue Oil on Canvas. Pelo meio, há ainda a Casa Museu José Saramago em Lanzarote, mas essa uma uma história que não cabe aqui.
Entre 1970 e 1986 José Saramago viveu neste terceiro andar da rua da Esperança, no velho bairro lisboeta da Madragoa, com a também escritora e jornalista Isabel da Nóbrega. Foram os anos das crónicas na Capital, da Revolução dos Cravos, dos polémicos saneamentos no Diário de Notícias, da escrita de Manual de Pintura e Caligrafia (1977), Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento (1982) e O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Portanto, os livros que alavancaram a sua carreira como escritor, e que estão entre os mais inesquecíveis da sua obra, foram pensados e escritos entre estas paredes.
Depois da separação de José Saramago, Isabel da Nóbrega continuou a viver nesta casa e ter-lhe-á feito poucas alterações. Por isso, o espaço permanece mais ou menos intacto, e dá a conhecer um período e uma relação que tem sido efetivamente ignorada pelos media e pelos estudiosos da obra do escritor. Este é, provavelmente, o primeiro trabalho jornalístico sobre a Casa Museu Isabel e José, embora o espaço tenha uma página pública no Facebook e esteja no conhecido site internacional de aluguer de casas Airbnb.
Nesta casa, que pode ser alugada por 25 euros a noite, os visitantes podem dormir na cama que foi de Saramago e Isabel, usufruir da sua estante de livros, da luz lisboeta que percorre a sala, das paredes. A casa não tem água quente, nem frigorífico, mas, garante Tomás Colaço, “tem a paz e a tranquilidade de um retiro”. E, de facto, as fotografias deixam ver um espaço poético, cheio de livros, cadeiras, e até a secretária onde os escritores escreveram os seus livros. Apesar de se chamar museu, nada ali parece morto. Muito pelo contrário, o espaço é animado por objetos, detalhes e pelas telas de Tomás Colaço, que também usa este espaço como ateliê. Nada aqui se parece com o simulado quarto de Fernando Pessoa destinado a famosos que havia na Casa Fernando Pessoa de Campo de Ourique.
Olhando para a caixa de comentários do site da Airbnb encontramos quase só estrangeiros que se mostram entusiasmados e gratos pela experiência de dormir na antiga casa de Saramago e Nóbrega. Como escreve Tomás Colaço no seu blogue: “A memória de Isabel está prestes a ser apagada da história, então eu senti que poderia de alguma forma manter o rasto do seu trabalho e da sua vida como escritora e companheira de José Saramago.” Afinal, sobre ela o Nobel terá dito: “esta mulher pariu-me mais do que a minha mãe”.
As casas dos escritores mortos ou a melancolia da ausência
A Casa Museu Isabel e José, ainda que quase secreta, exemplifica bem o fascínio que as sociedades modernas têm pela vida dos artistas, em geral, e dos escritores e poetas, em particular. Em Praga há a casa de Kafka, em Paris há a casa de Balzac, em Estocolmo há a casa de Strindberg, em Viena há a casa do Freud (e em Londres também). Hoje em dia, visitar uma cidade passa, quase obrigatoriamente, por visitar esses espaços folclóricos que vêm nos guias turísticos.
Como escreveu o filósofo francês Paul Virilio, estas paisagens urbanas contêm elevadas doses de melancolia, feita da presença fantasmagórica e da ausência palpável dos escritores mortos. Há quem prefira conhecer as suas casas e os detalhes da sua intimidade a conhecer os seus livros.
Melancolia tão mais forte quanto mais objetos e histórias tiver. São lugares que traduzem a moderna angústia da passagem do tempo, que possuem a beleza do que foi e do que poderia ter sido, do que já não é e do que um dia poderá ser. Estes espaços, como quaisquer ruínas, emocionam pelo que têm de perda, de rasto de algo que já se desfaz na memória, que é já um passado perdido mas que, ao ser visto e explorado, nos dá a ilusão de permanência.
Certamente que José Saramago parece mais vivo nesta casa da Madragoa do que na Fundação José Saramago. E, de certa forma, cada uma das casas representa o modo como duas mulheres apresentam a sua própria memória de José Saramago. Ambas são, portanto, lugares de evocação e de fantasmagoria. Cada visitante destes espaços não contempla nenhum real da vida do Nobel mas tão só uma paisagem de melancolia.
Na Casa Museu Isabel e José ainda não há merchandising, a ideia de dormir na cama que foi dos velhos amantes pode parecer a muitos politicamente incorreta, e os rostos aristocratas pintados em cadeiras vão enfurecer muita gente. Não é difícil imaginar que o autor de O Memorial do Convento odiaria as múltiplas referências monárquicas que hoje existem na casa. Parece ser uma irónica desforra, que nos faz pensar se este é um espaço de celebração de um casal de escritores ou uma forma de vingança daqueles que ele esqueceu.
O Observador tentou sem sucesso obter uma entrevista com o mentor do espaço, Tomás Colaço.
* Depois da publicação deste artigo a família da Isabel da Nóbrega entrou em contacto com o Observador afirmando que “à exceção da estante de livros, nada do que se encontra na Casa Museu pertenceu à escritora”.