Debruçou a vista para a água e observou as linhas que desciam direitas para a sombra profunda. Como ninguém ele as mantinha direitas, de modo a haver em cada nível das trevas da corrente uma isca exactamente aonde ele desejava que ela estivesse à espera de um peixe que por aí nadasse. Outros as deixavam ir à deriva na corrente, e às vezes estavam a sessenta braças quando os pescadores as julgavam a cem. “Mas, pensou, eu aguento-as com precisão. O que já não tenho é sorte. Quem sabe? Talvez a tenha hoje. Cada dia é um novo dia. É preferível ter sorte. Mas eu prefiro ser exacto. Assim, quando a sorte vem, está-se pronto para ela”. — in O Velho e o Mar, Ernest Hemingway

António Costa é a antítese do velho pescador Santiago, do Velho e o Mar, de Hemingway. Santiago fez-se ao mar depois de uma maré de azar. Tendo consciência disso, foi ultra-cuidadoso na forma como atirava as iscas. Caso a sorte viesse, queria estar preparado para ela. António Costa chegou ao PS a surfar uma vaga de fundo: trocando a cara de Seguro pela de Costa garantia-se a maioria absoluta.

O primeiro anzol que Costa atirou ao mar foi o elogio rasgado aos governos de Sócrates, protagonizado pelo seu novo líder parlamentar, Ferro Rodrigues. Pouco depois, Sócrates era preso. Costa teve azar? Teve, com certeza. Mas pôs-se a jeito. Ao fim destes anos, ainda não ter percebido que os governos de Sócrates eram dinamite eleitoral, do qual era necessário guardar uma distância enorme, foi de uma inconsciência confrangedora. Escolher para a frente de luta política destacados líderes do passado mostrava que não percebia o medo que os eleitores tinham desse passado.

O segundo anzol foi a colagem ao Syriza. O desastre que foi a negociação grega com a tróica, com uma humilhação superior ao esperado, foi azar para o Costa. Mas, mais uma vez, é evidente que uma pessoa ajuizada nunca teria mordido esse anzol. Qualquer pessoa de sensatez mediana percebia que a estratégia syrizica era, no mínimo, arriscadíssima. Infelizmente, a sensatez ficou ao largo do Largo do Rato.

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O terceiro anzol foi o de andar a negar a realidade durante demasiado tempo. Desde a saída de Vítor Gaspar que os indicadores económicos mostram que o país estava a recuperar. É inegável de que se tratavam de sinais ténues, mas eram reais. Passar mais de um ano a negar as evidências e a remar contra a realidade é uma estratégia que estava votada ao fracasso. O azar aconteceu no fim do mandato, quando alguns indicadores económicos ficaram em níveis mais altos do que no início do mandato. Mais uma vez, o PS agarrou o azar com ambas as mãos.

O quarto anzol que atirou ao mar foi o da ameaça da instabilidade, ao prometer não contribuir para a viabilização de uma solução pós-eleitoral que não o tivesse como primeiro-ministro. A estratégia era de risco, o medo da instabilidade podia levar os portugueses a concentrarem os votos no PS ou na PàF. Mais uma vez, teve azar e, mais uma vez, foi Costa que o pescou e não o largou. Ao se demarcar de forma tão extrema dos partidos do poder, dividiu o campo entre partidos de poder e de contrapoder. Ao fazê-lo, ficou do lado do Bloco de Esquerda e da CDU. Por inabilidade política, Costa subestimou o medo que os portugueses têm da instabilidade.

Não vale a pena esconder a minha irritação. O PS tem de assumir as suas responsabilidades. O país ficou à beira do abismo depois de quase 14 anos de poder socialista quase ininterrupto. Culpar exclusivamente o governo que vem a seguir por todas as medidas de austeridade que tomou, como se o país não tivesse estado a um mês de não ter dinheiro para pagar salários e pensões, é tratar as pessoas como estúpidas. O Partido Socialista tem de mostrar que percebe a nova realidade em que estamos inseridos. Que percebe que estarmos no Euro impõe restrições de política orçamental. Perceber que os portugueses estão fartos que empurrem os problemas com a barriga como se anda a fazer com a Segurança Social.

Com estes resultados, Cavaco não tem muito para reflectir, deverá dar posse a um governo minoritário de coligação, o que é inédito. Exige o mínimo de dignidade que Costa se demita. Afinal, seria isso que exigiria ao anterior líder se este obtivesse estes resultados.

Parafraseando uma das melhores deputadas portuguesas, que hoje conseguiu uma merecida vitória, é demasiado amadorismo para quem se julgava o melhor líder político do país e arredores.

* Aguiar-Conraria é professor e vice-presidente da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

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