Tudo começou com uma derrota. Melhor dizendo, “com uma derrota espetacular”. Estávamos em 1987, Portugal tinha entrado na Europa, Cavaco tinha tomado conta do Governo. E o “fenómeno MEC” foi a votos nas primeiras europeias, pelo PPM e com o apoio de Paulo Portas, então um jovem e muito irreverente cronista do Semanário, ex-militante do PSD. O resultado? 156 mil votos. Foi “um resultadão para o partido, uma ‘derrota espectacular’ para o candidato. Faltaram 60 mil votos para ser eleito”

E então veio o desafio. “Se um jornal vendesse isso…”. Lá estava a fasquia: 156 mil leitores. Lá estava o objetivo, ambicioso: bater o Expresso, o semanário mais importante do país, onde Miguel (que nunca tinha feito um jornal), se tinha imposto como “fenómeno de culto – por revelar ao país a música melhor que se fazia lá fora, por destapar o que o país tinha cá dentro”. E Miguel pensou num jornal com a ajuda de Paulo Portas e de uma mão-cheia de gente”.

Luís Nobre Guedes era uma mão-cheia de gente (leia-se, de investidores, de contactos). E pôs-se a falar com gente, para ver se o projeto tinha pernas para andar. E quando se fala com gente, há gente incontornável. “O Marcelo [Rebelo de Sousa] um dia explicou-me cientificamente que O Independente podia vender dez mil, que o Miguel era louco e o Paulo era inconsequente. Eu comecei-me a mexer e a dada altura deparamo-nos com excesso de capital”, contou ele a Filipe Santos Costa e Liliana Valente, os dois jornalistas que agora se puseram a lamber as páginas do Indy e a escrever as memórias do jornal mais marcante daquela década.

27 anos passados do nascimento d’O Independente, vale bem a pena a viagem pelo livro que os dois fizeram. Para percebermos o que ficou do jornal, do cavaquismo que nascia, da outra direita que lá se fazia. E, sim, de Paulo Portas. Para quem faz jornais, será um exercício de humildade. Para quem faz política também devia ser. Vamos por capítulos – mas aproveite e reveja estas capas deliciosas:

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O cavaquismo: o país que o Indy não percebeu

O Indy nasceu com Cavaco, depois de Cavaco. O Indy nasceu depois de Paulo Portas ter apoiado Cavaco, mas de se ter desiludido com ele. O mote do Indy era Cavaco. 

A recolha de dados que os autores do livro fizeram dá um resultado assustador. Sustenha a respiração:

“Vaidoso, vulgar, manipulador, demagogo, narcisista, cínico, estatista, buro- crata, maníaco, altivo, autocrata, autoritário, despótico, carismático, egocêntrico, justiceiro, pseudo-iluminado, bimbo, banal, curto, limitado, paroquial, parolo, prepotente, medroso, sem brilho, sem dimensão, arrivista, reacionário, obtuso, confuso, cego, surdo, esquálido, interesseiro, inepto, simplista, oportunista, populista, mediano, salazarzinho de subúrbio, imitação barata, vingativo, tosco, arrogante, um bom hipócrita, pequeno, piroso, pusilânime. Assim era Cavaco Silva, na caraterização exuberante de O Independente. Ninguém foi mais descrito, analisado, noticiado, narrado, e adjetivado pelo jornal do que ele.”

Pelo livro fora há mais do que isto. Sobretudo, Cavaco era um flop. Político a fingir que não o era, estatista como nenhum outro, esquerdista mesmo. Cavaco estava em maioria absoluta e o Indy veio para fazer de contrapoder. E fez: mais de 90 capas, naqueles anos até 1995, tiveram a foto dele. A cada editorial percebia-se ao que vinha o jornal. 

«O Paulo queria uma direita inglesa, de lordes, uma direita gaulista, uma direita como a do Suarez… Tinha um projeto para se criar em Portugal uma direita culta, educada, elitista, liberal, com o timbre do bem vestir. Era contra o Cavaco, porque o Cavaco personificava o contrário disso. Se o Paulo teria um papel nessa direita? Havia de ter.» Helena Sacadura Cabral descreve assim a ideia de Paulo. Ninguém como uma mãe para conhecer o filho.

Demorou tempo para Paulo e Miguel perceberem que o país não tinha a ideia de Cavaco que eles tinham. Durante anos, os dois recusaram qualquer aproximação – era preciso manter a independência, diziam. Até ao dia, “em vésperas das legislativas de 1991, que Portas decidiu que era preciso descer à terra e ver o fenómeno em ação”. E descreve o livro:

“O regresso, depois dessa jornada nortenha, foi uma excitação. A redação queria saber como ele era, se se babava, se tinha modos à mesa, se tinha conversa. Constança trazia notícias mais importantes. «Disse-lhes que ele ia ganhar as eleições. Que ia ter maioria absoluta, limpinho. O Paulo não acreditou. Respondeu que eu tinha ficado deslumbrada…». Na reportagem, Constança escrevia sobre essa maioria absoluta que tinha antevisto na estrada.” A reportagem faria capa da 3, a revista de culto do Indy, com um título sugestivo: “Na cama com Cavaco”.

Cavaco ganhou com maioria e Paulo desabafou que o jornal não tinha influência nenhuma. Ter tinha, mas não era aquela que Portas queria. Era boa para um diretor-adjunto, mas inconsequente para um político.

O tempo passou e tudo mudou. O cavaquismo lá acabou por cair, Portas saiu do Indy e entrou na política. E a ironia é que foi Portas quem deu o apoio decisivo a Cavaco, naquele regresso à primeira volta pela porta de Belém. Tal como aconteceu depois, em 2011. Foi Cavaco, aliás, quem lhe abriu a porta à reentrada no Governo, em coligação com o PSD. E foi ele também quem o obrigou a abdicar do “irrevogável”, voltando ao Governo como vice-primeiro-ministro (mas colhendo a maior humilhação política da sua vida). 

Portas nunca derrubou Cavaco e acabou ao seu lado. Esta semana pode sair do Governo antes do próprio Cavaco sair de Belém, vendo os dois acontecer o que nunca imaginaram: o PCP e o Bloco a entrarem numa coligação que levará o PS ao poder.

Marcelo: nunca digas vichyssoise

“Ninguém como Marcelo, no jornalismo português, cometeu até tão tarde o erro de olhar para os jornais como projetos políticos”. A frase é do próprio Portas – e descreve-o ao espelho na perfeição. A relação dos dois vem de trás, muito de trás. Foi a Marcelo, ainda no Semanário, que Portas apresentou a ideia de um suplemento. “Um produto que rompesse com o que existia, com um ponto de partida estético e cultural, juntando reportagem, crítica e tendências”. Marcelo recusou. “Disse que em Portugal a direita só comprava a Olá!, não queria uma revista cultural, e chumbou.”

O projeto de Paulo Portas acabou por nascer fora. O caderno 3 d’O Independente, ao comando de Esteves Cardoso, foi o primeiro grande sucesso do projeto – arejado, bonito, bem escrito, sem pudores. Sobretudo elitista, ao melhor modo britânico. Mas veio com outro projeto, o do primeiro caderno, político e liderado por ele, Paulo Portas.

E Marcelo? Portas não o largou. O fundador do PPD, também fundador do Expresso, tinha partilhado com Portas a Nova Esperança, um grupo de gente de bem que não queria o PSD no Bloco Central – e que acabou por abrir a porta a Cavaco porque era dele quem o ia destruir. Um e outro tinham ambição, currículo político e jornalístico (feito em simultâneo, porque com eles não havia fronteiras). Um precisava do outro e foi assim que conviveram.

No Indy. Marcelo era fonte privilegiada. Portas apoiou-o abertamente nas páginas do jornal quando Marcelo se atravessou com uma candidatura à Câmara de Lisboa, o que o diretor-adjunto do jornal achava que era a oportunidade única para renovar a direita por dentro do PSD.

Mas Marcelo perdeu. E depois enganou Portas com uma ementa inventada de um jantar em Belém, a vichyssoise que Portas contou mais tarde no programa de Herman José – e que ficará nos anais da história política portuguesa.

Vale a pena ler os dois parágrafos onde o Filipe e a Liliana contam como Portas percebeu que tinha sido enganado (e o hábito por ali não era bem esse).

“No dia seguinte, ao fim da manhã, quando o diretor d’O Independente ligou a Barroso, percebeu o logro. Boa parte da informação de Marcelo não batia certo. «Pode-me dizer o que é que comeram?», perguntou. «Eu até disse à minha secre- tária para me trazer o menu», recorda Barroso, que leu a ementa ao telefone. De vichyssoise, nem cheiro. «Do outro lado da linha houve um silêncio, e ele acaba por dizer: “Ah, o grande filho da puta!”». Foi quando Portas contou a Alfredo que (e como) tinha sido enganado por Marcelo.

Paulo estava furioso. Três meses antes Marcelo já tinha roubado elementos essenciais d’O Independente, aliciando-os a ir para o Semanário; agora, tentava dar o golpe na credibilidade do jornal, com informação falsa. Portas empenhou-se em apurar tudo o que se tinha passado à mesa de Belém. Fez questão de que fosse essa a manchete dessa semana: «Ódios de perdição». Cavaco e Soares na capa, com ar de poucos amigos, e o relato sobre a tensão dessa terça-feira, «o dia das grandes intrigas»30 (e mal sabia o leitor da missa a metade).”  

Agora, no tempo em que o livro é publicado, é fácil discorrer ironias sobre a dupla. Portas entrou na política, Marcelo também – cada qual a dirigir o seu partido. Coligaram-se, depois de Leonor Beleza (a cavaquista mais martirizada por Portas no Independente) ter ajudado a refazer a ligação. Mas a coligação caiu antes do tempo, de novo com direito a entrevista televisivas mais mortíferas que um escorpião. E de novo romperam. Marcelo voltou a comentador, também a fonte (mas não de Portas). Acabaram por reatar. E tudo acabará com Portas a apoiar Marcelo para Belém, como líder do CDS, no momento em que o professor, jornalista, político (tudo ao mesmo tempo) mantém a direita à distância e abre caminho a um governo de esquerda. 

Quando falamos de Marcelo e de Portas, o melhor é deixar as cenas dos próximos capítulos em aberto. Nunca que se sabe como a história vai continuar.

O PSD: remar com os sulistas, elitistas e liberais (e acabar ao contrário)

Portas «nunca resolveu o seu problema com o PSD», diz Marcelo aos dois jornalistas que se dedicaram a rever a história do Indy. “Se é verdade hoje, ainda mais era nos anos 80, quando essas feridas ainda eram recentes: por um lado, com a frustração por uma experiência mal sucedida na JSD; por outro, com a consciência de que era no ataque aos seus antigos correligionários que Portas mais brilhava. “Ele ganhou o estatuto de estrelinha no ataque ao PSD. A especialidade dele era irritar os laranjinhas”, insiste Marcelo.

Nos tempos do Indy, o PSD era – claro – Cavaco Silva. Voltamos ao livro?

“No princípio era o sujeito. Cavaco. O sujeito corporizou o substantivo e desmultiplicou-se em adjetivo e em verbo. O país rendeu-se ao cavaquismo. Tornou-se cavaquista. Cavaquizou-se. Foi contra o sujeito, o substantivo, o adjetivo e o verbo que Paulo Portas concebeu o seu jornal enquanto projeto político. Por uma nova direita, que se definia tanto por si mesma como pela diferença e contraste em relação ao que existia – o cavaquismo.” 

Mas o cavaquismo não era todo igual, nem para Portas, nem para Miguel Esteves Cardoso. A direita que eles queriam, o jornal que eles fizeram, desprezava um tipo de cavaquismo que foi o que se impôs a partir do final da primeira maioria.

“Sem cultura, sem mundo, sem nome, sem preparação, sem gosto, sem competência. Com cartão partidário, devoção ao chefe e currículo de gente que se fez a si mesma”.

Para eles, a divisão era até mais profunda: a ala direita para um lado, a corrente social-democrata para o outro. A ala de Portas era a direita, que Dias Loureiro encabeçava. A que venceu era a outra, a que Fernando Nogueira liderava. 

Os textos de Portas no Indy tinham, assim, um alvo preferencial. E Portas fez de tudo para lhe tirar força. Na fase em que ainda acreditou no PSD, apoiou Marcelo. Depois disso, inventou um candidato presidencial – Basílio Horta, que o jornalista convenceu em sua casa a apresentar-se à luta contra Freitas (líder do CDS), a quem preparou um debate com Soares, que apoiou em editoriais. Mais tarde, quando viu Cavaco reeleito, ‘criou’ Manuel Monteiro e o novo CDS (prometo, vou já voltar a este ponto).

E também aqui o projeto político que o Indy tinha por dentro falhou o alvo. O PSD não caiu por ele, caiu de podre. E sobreviveu a ele – com Nogueira na liderança, depois com Marcelo, até com Marques Mendes (e tanto que o Indy lhes mordeu as canelas). Portas entrou no CDS, chegou a ambicionar levar o partido para um novo patamar – desafiando Passos, num debate, a coligar-se a ele se o CDS tivesse mais votos. E perdeu. Acabou coligado com o líder menos elitista, mais liberal da história do partido – e tentou desafiá-lo por dentro, com um discurso mais ao centro do que nunca. Fechou os tempos de governo a fazer campanha ao seu lado, deixando o seu CDS sem ir a votos há quatro anos – e destinado a manter uma aliança na oposição, para combater a esquerda unida.  

O CDS: o que nos conta Manuel Monteiro

Para quem procura notícias picantes no livro “A máquina de triturar políticos”, o capítulo essencial é aquele em que um político é construído. “Como se faz um partido” é onde é dada a palavra a Manuel Monteiro, o líder do CDS que Portas fez. Fez, sim senhor. E é o próprio Monteiro quem o diz. Já lá vamos, é preciso contexto.

Monteiro conheceu Portas na Universidade Católica, mas não um não era a praia do outro. Portas era jornalista, ativo e a caminho de influente, Monteiro um moço da JC, a juventude do CDS. Mas Monteiro soube usar a JC para ganhar peso e influência.

E no dia em que Portas achou que o PSD já não ia lá, Monteiro estava à mão, com poder suficiente para tirar da liderança os que tinham por lá falhado. Agora sim, palavra a Manuel:

“Tínhamos os votos, tínhamos esta ideia de conquistar o CDS, mas não tínhamos o lado da corte. Tínhamos a macaquice para as reuniões das assembleias distritais, mas não para a grande política. E o Portas – aliás, o Luís Nobre Guedes – percebe isso: estes miúdos descobriram um diamante, mas não o sabem lapidar.”

“Já viu o que é dizer a um miúdo de vinte e tal anos: o segundo jornal mais importante do país acha que tu és um gajo importante? Você imagina o que é vermos que o Portas – um tipo importantíssimo, visto como o mais inteligente da nossa geração, que tinha fundado o jornal de que toda a gente falava – vinha ter connosco? Considerávamo‐nos abençoados por ele e O Independente nos darem crédito”.

E se deu. Portas entrou pela casa de Monteiro (todas as noites, diz ele). Preparou-lhe a entrada na liderança (numa suite do Altis, onde decorria o congresso), levou empresários para o partido, fez discursos ao líder, preparou-lhe cenários mediáticos, deu-lhe espaço no jornal, apoiou-o em editoriais. Conta-nos o livro que fazia mais: dava-lhe as informações que o jornal tinha antes de publicar as histórias – e Monteiro usava-as. O partido cresceu, o líder ganhou popularidade. Portas chegou a ser convidado para ir a votos, nas europeias de 1994. Dois jornais deram a notícia, Paulo desmentiu – e jurou que nunca iria a votos.

E continua: Paulo definiu a agenda do partido. Contra a tirania fiscal, com um Guião para a reforma do Estado (reduzido às funções clássicas), focado na Segurança, na Agricultura, contra os políticos “medíocres” (lembram-se dos tachos nas campanhas do CDS em 1995?). E eurocético – mas já lá vamos.

Monteiro foi a eleições – e Portas foi a votos com ele, saindo d’O Independente. E não tardou a correr com Monteiro – na verdade, preparando o ato ainda antes da saída, quando escreveu sobre as duas alas do CDS, uma mais radical (Monteiro), outra mais moderada, mesmo que à conta de menos votos. O livro não conta muito sobre o pós, mas a história é conhecida. Portas acabaria líder do partido, Monteiro fora dele. O CDS passou a PP, mas depois voltou a CDS(/PP). Agarrou-se às bandeiras, mas no Governo teve o infortúnio de viver sob a troika – e foi um secretário de Estado do CDS que acabou por olear a máquina fiscal mais impiedosa de sempre, foi Portas quem fez (à força) um guião da reforma do Estado que não se aplicou. E que acabou por virar euroconsciente, para usar uma palavra que o próprio Portas usaria.

Portugal na CEE (é um Portugal pequenino?)

Os autores que me perdoem, mas há um excerto do livro que é obrigatório citar. É aquela em que Miguel Esteves Cardoso entra em cena e conjuga forças com Portas numa certa ideia de Portugal. 

“Se havia assunto com que não brincava era Portugal e ser português. Ou melhor, brincava, mas era coisa séria. Ser patriota e ser conservador eram características indissociáveis, num país que não apreciava nem uma nem outra.

«Um conservador tende a ridicularizar qualquer inovação. Pode ser aborrecido. Pode até ser perigoso. Mas é um trabalho que se faz em Portugal cada vez menos, se calhar devido à descoberta científica do “desenvolvimento”, do desejo de tornar Portugal “irreconhecível” ou “europeu”»

Do seu ponto de vista, continuar Portugal era necessário, torná-lo «irreconhecível» ou «europeu», não.

«Continuar Portugal não é uma ação delicada, ou uma campanha urgente, ou uma tarefa que exija o sacrifício de todos os cidadãos. É simplesmente continuar a perguntar, a barafustar, a amaldiçoar o dia em que se nasceu desta cor, nesta pele, com este coração mole e fácil de apertar e de espremer. Continuar Portugal é acreditar que a vida seria pior sem ele, pior se a Europa começasse em Espanha, pior se fossemos suíços ou belgas ou finlandeses. Continuar Portugal é ser português e dizer “Pronto, que se lixe, o que é que eu hei de fazer?”»”

O Independente nasceu assim, com este gene. Mas nem por isso acomodado a este Portugal. O Indy queria um Portugal moderno, um Portugal onde a elite contava, um Portugal… independente. Sobretudo da Europa.

“Antes de se juntarem no jornalismo, Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas uniram‐se no antieuropeísmo. Antes de darem gás a O Independente, faziam contravapor à Comunidade Europeia”, lê-se no livro. E no Indy esse caminho só se acentuou. Com o tempo, veio Maastrich, veio a União Monetária, veio a reunificação da Alemanha. Vieram os fundos europeus. 

O Indy de Portas exigia um referendo (a par de Manuel Monteiro, pois claro). Lutava contra o “poder hegemónico da Alemanha”. Exigia a Cavaco que não se rendesse. E ao país também.

“Com mais ou menos reviravoltas, a questão europeia dava poucas razões a Paulo Portas para olhar os políticos nacionais com confiança ou entusiasmo. «Sobretudo os pirosos [que] estão convencidos que fazer boa figura em Bruxelas significa parecer mais europeu do que se é». A crítica não se aplicava apenas ao chefe do Governo e aos coronéis do centrão. Neste, como em muitos aspetos, o povo pensava como Cavaco: queria a «Europa porque ela é um poço com fundos. É um romance de interesse.»

Nessa paixão superficial, os portugueses revelavam a sua natureza profunda. Eram os «Oliveiras da Figueira» – à semelhança do comerciante lisboeta das histórias de Tintin, era gente que «não se importava de trocar a bandeira ou o Parlamento se lhe dessem mais um quilómetro de estrada» (…)

Portas falava numa «psicose europeísta»; Miguel Esteves Cardoso também via a relação dos portugueses com a Europa como um caso de foro quase psiquiátrico. «Estive a ver no dicionário o significado de ensandecer e confirmo que é isso que nós portugueses estamos a fazer. Estamos a tornar‐nos em sandes. A Europa está a tornar‐se no pão nosso de todos os dias. Só entre duas finas fatias desse pãozinho branco e sem sal se encontra, com sorte, um pedaço de chouriço português».

Pois era assim, concluíram o Filipe Santos Costa e a Liliana, depois de milhares de páginas de Independente. 

“O famoso «consenso europeu», defendia Portas, «como todos os consensos, não chega”. Por muito que a integração económica fosse «irreversível» e a integração política parecesse «um pudim instantâneo». Aliás, o dito consenso era tudo menos consensual. Prova n.o 1: O Independente, enquanto foi o jornal de Paulo Portas, esteve sempre do lado de fora. Prova n.o 2: como um gémeo siamês, o CDS de Manuel Monteiro também.”

Lido de 2015, O Independente traz-nos mais este dissabor. Portas entrou no CDS e virou-o euroconvencido. Portas entrou no Governo e não fez referendo. Portas entrou no euro e tornou-se um defensor (justiça feita, não um incondicional). Entrou na Europa e tornou-se um adepto do consenso europeu. Era mais fácil falar do que fazer. É sempre assim no jornalismo.

O jornalismo: perfeito, de tão imperfeito. Irrepetível.

No jornal, todos desconfiavam de que o Independente era um partido embrulhado num jornal, mas o que vingava era a regra “don’t ask, don’t tell”, explica diz o livro. Como havia certezas na redação, havia discussões. Mas como havia liberdade, não havia contestação. Ou talvez houvesse.

Helena Sanches Osório não entrou no início, mas foi ela que levou para O Independente o que acabou por fazer a diferença: as manchetes, as melhores histórias e notícias. Ganhou peso na redação, ganhou influência no jornal. E foi ela quem tentou, já perto do fim do Indy de Portas e MEC, uma espécie de golpe de Estado no jornal. O Filipe e a Liliana contam como:

“Não era só a irritação de se sentir usada para os planos políticos de Paulo Portas que fazia ferver o sangue de Helena Sanches Osório, afastando‐a do diretor do jornal. Era a perceção de que o concubinato que se tinha estabelecido entre O Independente e o CDS «desacreditava em absoluto o trabalho que lá se fazia» e podia ser fatal para o semanário. Sanches Osório pôs em causa, uma e outra vez, a ligação umbilical que Portas mantinha com Monteiro, mas sempre para ouvir respostas de descaso. Em abril de 1994, passou à ação.

No dia 25, simbólico entre todos, organizou a revolução. Convidou para um almoço na pastelaria Versailles, a poucos quarteirões da redação, os jornalistas seniores do Indy. Houve quem nem aparecesse, por não se querer meter num almoço subversivo. Helena expôs as suas preocupações sobre o futuro do jornal, caso continuasse a ser usado por Portas como órgão oficioso do CDS, e defendeu que o melhor caminho seria a mudança de diretor. Perdeu parte das tropas sem que o almoço chegasse sequer ao fim. O golpe abortou.”

O golpe abortou porquê? No Indy, havia política, mas havia jornalismo. Havia excessos, mas também ousadia. Havia loucura, mas também genialidade. Houve erros, muitos, mas também verdades – tantas.

O Indy era isto tudo – mas o que fazia o melhor e o pior do jornal era mesmo a agenda que tinha: o Indy era mais do que um projeto para os leitores, mais do que um projeto ideológico, era um projeto político pessoal.

Depois de Portas e MEC, O Independente morreu (de morte lenta). Desde O Independente, o jornalismo nunca mais arriscou aquelas águas. Há, sim, quem arrisque as manchetes-bomba, mas nunca mais àquele ritmo. Há quem arrisque um posicionamento, mas nunca mais misturando as águas da opinião com as da notícia. Há quem aproveite a conjuntura para arriscar, mas não mais com aquela conjugação de interesses extraordinária – de um jornal que tinha no inimigo o maior aliado.

Veja bem a ironia: o cavaquismo era a razão de ser do projeto, a sua maioria absoluta o íman para as suas fontes. Sem ele, perderam-se as fontes, perderam-se as bombas, perdeu-se o mote, perderam-se os líderes. Perdendo-se os líderes, foi-se o génio (e o génio é mesmo o mais difícil de encontrar).

O Independente mudou o jornalismo? Mudou. Mas o projeto de MEC e PP tornou-se irrepetível. RIP.

A derrota foi espetacular

Ainda hoje o Indy deixa saudades – muitas sobretudo à direita, para quem o acompanhou. Pelos títulos. Pela imagem. Pelo ar moderno. Pelo ar de metrópole. Pelo textos bem escritos. Pelas bombas. Pelas ideias. Pelos editoriais. Pelo jornalismo (apesar de tudo).

Não haverá muitos que não o recordem com prazer, com vontade que tudo volte ao dia 1. Não haverá quem não se lembre do nervosismo do cavaquismo, do frisson na manhã de sexta-feira, do prazer de ler, de beber. Alguns podem até lembrar-se dos dias em que o Indy mordeu os calcanhares do Expresso. Ou do que ele deixou e ensinou. Muitas das ideias vingaram, ficaram. Sobretudo onde mais contam: na memória coletiva. 

É verdade: o PSD continuou maior do que o CDS, o euro é popular (mesmo com tantos problemas que, justamente, Portas anotava), Cavaco reinou (embora termine pior do que imaginaria alguém), Marcelo mesmo pode ser Presidente (e terá os seus jantares de ementa secreta). Mas Portas virou líder político (o mais duradouro), influenciou, sobretudo marcou – ele e o jornal que comandou naqueles sete anos.

Como muito bem contam o Filipe Santos Costa e a Liliana Valente, o Indy perdeu. Como muito bem recorda a obra deles, o Indy ganhou. É por isso que estou aqui a falar-lhe dele. Porque era mesmo bom – com tudo o de mau que teve.