Entre as páginas mais negras da História recente da Europa, há uma palavra que se destaca: Molenbeek. É este o nome do bairro de Bruxelas onde nasceram, viveram, ou pelo menos passaram, alguns dos responsáveis pelos mais mortíferos ataques terroristas islamistas dos últimos anos. Desde 2004, já mataram 521 pessoas — sendo que este número pode subir em breve, caso aumente o número de mortos nos atentados desta terça-feira em Bruxelas.

A lista começa com Hassan el-Haski, um homem de nacionalidade belga que residiu em Molenbeek e foi preso por ter ligações ao atentado em Casablanca em 2003 e no metro de Atocha, em Madrid, em 2004. E também foi por aquele bairro que passou Mehdi Nemmouche, responsável por matar quatro pessoas no Museu Judaico de Bruxelas em 2014. Foi ainda em Molenbeek que Amedy Coulibaly, um dos responsáveis pelo ataque de janeiro de 2015 ao Charlie Hebdo e a um supermercado kosher terá arranjado armas. Em agosto do ano passado, Ayoub el-Khazzani saiu daquele bairro e momentos depois subiu a bordo de um comboio com destino a Paris armado com uma kalashnikov — para sorte dos passageiros, foi imobilizado por dois jovens militares norte-americanos antes de dar início ao atentado.

E, enfim, foi de Molenbeek que Salah Abdeslam e outros partiram em novembro de 2015 em direção a Paris — de carro, são apenas três horas de viagem — para executarem o atentado mais mortífero na Europa desde Atocha. E foi para Molenbeek que voltou logo após os ataques de 13 de novembro — e onde viria a ser capturado na sexta-feira passada, 18 de março. Quatro meses depois, foi apanhado numa operação policial aparatosa que, segundo o Politico, terá começado após ter sido feita uma encomenda anormalmente grande de pizzas para a casa onde Abdeslam estava escondido.

Quatro dias depois da detenção de Abdeslam, nesta terça-feira, a Europa voltou a ser palco de um novo atentado terrorista entretanto reivindicado pelo Estado Islâmico. Ainda não se conhecem os pormenores por trás do planeamento deste ataque. No entanto, se por um lado é lógico que as explosões deste 22 de março possam ser uma vingança dos terroristas pela prisão de Abdeslam, também é plausível a hipótese que aponta para os responsáveis deste ataque terem procurado agir o mais rapidamente possível — não dando tempo para a investigação em torno de Salah Abdeslam poder detetar as suas intenções hoje concretizadas.

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Desemprego, radicalização e armas. A receita de Molenbeek

Entre os 19 bairros de Bruxelas, Molenbeek é o que tem maior densidade populacional. Vivem ali aproximadamente 100 mil pessoas e, entre estas, 30% são estrangeiras e outros 40% têm antepassados fora da Bélgica. O desemprego é altíssimo — enquanto na Bélgica a taxa é de apenas 8,5%, em Molenbeek estima-se que o número chegue aos 30%. Entre jovens, é de 40%.

Num texto do The Guardian publicado a 17 de novembro, dias após os ataques de Paris, o jornalista belga Kristof Clerix, especialista em terrorismo e segurança, escreveu o seguinte sobre os jovens daquele bairro:

“Os habitantes jovens, que na maior parte dos casos são muçulmanos, não têm as mesmas oportunidades no mercado de trabalho e de arrendamento e queixam-se de serem confrontados com racismo nos seus quotidianos. Eles têm o perfil perfeito para serem vítimas de radicalização. Se o Estado belga tivesse investido mais na integração das comunidades de imigrantes, o potencial de radicalização seria significativamente menor hoje.”

Recentemente, em fevereiro, o Banco Central da Bélgica escreveu um relatório onde sublinhou a dificuldade que o mercado de trabalho nacional tem em integrar imigrantes que ali chegam de países de fora da União Europeia (UE). Segundo números de 2014, só 40,5% de cidadãos extra-comunitários entre os 20 e os 64 anos tinham um emprego, ao passo que o número subia para 68,6% entre belgas.

Mas, embora possa ser o início de um processo de isolamento social e posterior radicalização, a economia não é a única razão para a Bélgica, e em particular o bairro de Molenbeek, estar na origem das páginas mais negras da História recente da Europa. Para Kristof Clerix, há outras realidades a ter em conta:

  • A “localização estratégica” de Bruxelas, a partir de onde se pode chegar rapidamente a vários países europeus sem qualquer tipo de restrições fronteiriças;
  • O sentimento de “anonimato” que faz de Bruxelas “um esconderijo perfeito” onde os terroristas podem contar com a ajuda de simpatizantes;
  • A falta de clérigos muçulmanos de Bruxelas abre caminho à instalação de outros que vêm de fora, inclusive alguns que são “patrocinados” pela Arábia Saudita e fazem parte da corrente radical Wahhabi do Islão;
  • O tamanho “relativamente reduzido” do aparato de segurança belga, que se estima contar com cerca de 1200 operacionais (metade são militares) que têm a cargo a proteção de um país que é, simbólica e administrativamente, a capital da Europa, e onde inúmeras organizações internacionais estão sediadas ou representadas.

A juntar a isto há a difícil articulação das autoridades belgas, que, como é característica do país, operam em duas línguas (francês e flamengo). E ainda a má reputação que a Bélgica tem de ser um país onde o acesso a armas ilegais é relativamente fácil. Até 2006 imperou uma lei na Bélgica que tornava possível comprar uma arma de forma simples, sendo apenas preciso a apresentação de identificação. “As pessoas sabiam que a Bélgica é um sítio onde se podia comprar armas”, disse Nils Duquet, do Flemish Peace Institute, ao Financial Times pouco depois dos atentados de Paris. Tudo isto num país que é um dos maiores produtores de armas do mundo.

O país com mais estrangeiros no Estado Islâmico per capita

Possivelmente mais graves são os números que tornam a Bélgica o país da UE onde, per capita, mais indivíduos saem para se alistarem em grupos terroristas concentrados na Síria e no Iraque, como a Jabhat al-Nusra (ligado à al-Qaeda) e o Estado Islâmico. “A nossa estimativa por excesso indica que a certa altura estiveram ativos na Síria e no Iraque 562 [belgas]“, escreveu a 2 de fevereiro Pieter van Ostaeyen, investigador deste fenómeno na Bélgica. “Esta contagem significa que a população muçulmana da Bélgica tem tido um papel fundamental no envio contínuo de combatentes para grupos como o Estado Islâmico e a Jabhat al-Nusra”. Pelas contas de Van Ostaeyen, a proporção é de 41,96 belgas a militarem nesses grupos por cada milhão. Na Europa, só o Kosovo (122,11 por milhão), a Bósnia (84,62 por milhão) e a Macedónia (69,52 por milhão) apresentam números mais altos.

A doutrinação e recruta dos jovens belgas que partem para a Síria e para o Iraque é feita sobretudo em ambientes como o de Molenbeek e, ao contrário do que se pode pensar, não costuma passar pelas mesquitas, mas antes pelas companhias, amigos e demais contactos sociais. Foi isso que determinou o antropólogo Scott Atran, co-fundador do Center for the Resolution of Intractable Conflict da Universidade de Oxford, que disse que “a radicalização raramente ocorre nas mesquitas”. Além disso, apurou ainda que 20 por cento dos estrangeiros que se juntaram ao Estado Islâmico foram recrutados por familiares.

Foi assim com Salah Abdeslam, que, quando partiu de Molenbeek para espalhar o terror em Paris, fê-lo acompanhado de amigos e do irmão, com o qual geriu um bar naquele bairro (onde servia álcool, em tempos onde não parecia seguir o Islão à regra). Quatro meses depois, foi detido em Molenbeek.

No domingo, perante o aparente sucesso das autoridades belgas, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Didier Reynders, disse que a detenção do homem mais procurado da Europa foi “um grande golpe”. Mas, depois, deu um passo atrás: “Estou consciente de que a rede [terrorista] não foi eliminada, por isso temos de continuar as nossas ações e continuar a a investigação”. E, mais à frente, garantiu: “Ele estava pronto para recomeçar qualquer coisa em Bruxelas (…). E isso é talvez a realidade, porque encontrámos muitas armas, armas pesadas nas primeiras investigações, e encontrámos uma nova rede em torno dele em Bruxelas”.

O talvez de Reynders passou a certeza, depois de o Estado Islâmico ter matado 34 pessoas em Bruxelas. E, de novo, todas as pistas apontam para o mesmo sítio: Molenbeek.