Marcelo Rebelo de Sousa recorreu ao tom a que habituou o país durante longos anos de comentário político nas televisões: colocar tudo em cima da mesa e traçar possíveis respostas/riscos. Agora que é Presidente da República, o impacto é outro: o comentário passa a aviso sério e a análise das hipóteses em jogo transforma-se em exigência. Num formato a que prometeu recorrer sempre que tiver de explicar alguma decisão de peso ao país, Marcelo falou sentado a uma secretária e sem um discurso escrito para distribuir, para justificar por que promulgou o Orçamento do Estado para este ano. Não se mostrou convencido sobre um diploma que notou não ter arrebatado ninguém e deixou mais dúvidas do que certezas sobre um Orçamento a que não chama mais do que “solução de compromisso”.

As dúvidas

1. “As previsões, mesmo revistas, não serão ainda demasiado otimistas?”

O Presidente nunca as coloca diretamente, refere-se às dúvidas quase como teóricas, mas os recados ficam dados e o primeiro é sobre as previsões económicas inscritas no diploma aprovado pela esquerda parlamentar. Marcelo lembra que elas foram revistas, quando o Governo levou o esboço Orçamental à Comissão Europeia, tendo de ceder a algumas exigências que lhe foram colocadas, entre elas a revisão das metas iniciais do défice e do crescimento e até de medidas. Quando coloca a pergunta, o chefe de Estado responde também indiretamente, refugiando-se no que diria “uma análise fria”: “Neste momento não é possível, em Portugal como noutras economias, estar a garantir que as previsões vão ser confirmadas pela realidade. Há tantas incógnitas e incertezas que essa garantia não pode ser dada”.

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E, neste ponto, o chefe de Estado vai fundo, começando a declaração precisamente pelo contexto em que o Orçamento surge, uma “situação complexa”, de “sinais contraditórios” vindos de três planos: o mundial — onde é preciso dar especial atenção às economias emergentes, aos produtores de petróleo (as duas “fundamentais para as nossas exportações”) e à estabilidade dos mercados financeiros; no plano europeu, onde falou nos dados que “apontam para uma situação aquém da prevista há seis meses”, sem contar com os problemas políticos (exemplo: os refugiados); por fim, no plano nacional, o Presidente vê também indicadores “contraditórios”, uns apontam “para a saída da crise, mas outros apontam para perspetivas aquém do previsto no outono passado”.

2. “Poderá ser executado sem medidas adicionais que venham a exigir retificação?”

O anterior Governo retificou por oito vezes os Orçamentos do Estado que aprovou durante o seu mandato e Marcelo não se esqueceu disto quando falou na execução orçamental deste ano e se referiu “à prática dos últimos anos”. A pressão neste capítulo foi colocada quase exclusivamente nos ombros do executivo de António Costa. Porque Marcelo admitiu que a execução depende de fatores externos à ação do Governo, como “a evolução da situação económica”, mas também do “realismo das previsões sobre a receita e a despesa” (e isso é responsabilidade do Governo) e sobretudo da forma como o Orçamento vai ser executado. E foi aqui que fez o aviso mais direto e dirigido: “Insto o Governo e a Administração Pública a serem muito rigorosos na execução do Orçamento do Estado”.

O aviso aqui é claro: quanto mais controlada for a execução, mais margem há para fazer face a eventuais derrapagens e imprevistos futuros. Ou, nas palavras de Marcelo: “É esse rigor que pode permitir fazer face a uma evolução económica menos positiva ou a problemas quanto ao realismo das receitas e despesas previstas”.

3. “Este modelo que aposta no consumo das famílias e público fará crescer a economia?”

A resposta está, mais uma vez, “sobretudo na execução do Orçamento”, de acordo com o chefe de Estado. Mas não só. “Depende do Plano Nacional de Reformas e do Programa de Estabilidade” que o Governo apresentará nos próximos dias e que vão estabelecer as linhas de ação para um horizonte mais largo (quatro anos) do que o do Orçamento do Estado. O PS já chamou o maior partido da oposição, o PSD, para se sentar à mesa da negociação dos dois documentos que, tal como o Orçamento do Estado, têm de passar pela apreciação da Comissão Europeia.

Mas a prova definitiva sobre a eficácia do modelo assente sobretudo no consumo, Marcelo só espera mesmo tê-la em 2017. Só aí espera que se comece “a ter uma resposta”: “O modelo provou ou não provou?”. Não há uma carta branca dada pelo Presidente ao caminho escolhido por António Costa. Há que ver para crer.

4. “A política é a arte do possível. Resta saber se o possível é suficiente”

O Presidente descreveu o Orçamento do Estado como um diploma que não enche as medidas de ninguém: do Governo, dos partidos que o apoiam e das instituições europeias. Os dois primeiros, descreve Marcelo, não tiveram o OE que teriam preferido e a Comissão Europeia não teve o que teria “apreciado”. E aqui deixou um aviso implícito à necessidade deste equilíbrio constante, e que vai voltar a ser testado já nos próximos tempos — na apresentação dos dois documentos já referidos (o Plano Nacional de Reformas e o Programa de Estabilidade). Marcelo recorreu mesmo à velha máxima: “A política é a arte do possível”. Mas para voltar a frisar a incerteza: será esta uma medida “suficiente”?

Certezas

1. “Os portugueses precisam de saber com o que contam”

Aqui, o Presidente foi curto e grosso e acabou por justificar os quatro dias (em vez dos 20 que tinha disponíveis) que levou para promulgar o Orçamento: o país precisava de ter este instrumento em vigor rapidamente. Porquê? “Os portugueses precisam de saber com o que contam, no que vão receber e no que devem pagar”.

2. “A certeza do Direito”

A existência de dúvidas constitucionais ou o esclarecimento sobre se tenciona enviar o diploma para o Tribunal Constitucional era um dos pontos que os últimos anos ditaram que o novo Presidente deixasse claro na sua declaração. É verdade que, desta vez, esse não foi tema suscitado na análise deste Orçamento do Estado, mas depois dos pedidos de fiscalização sucessiva dos últimos anos (do Presidente da República incluídos), Marcelo quis deixar claro que não encontrou, “em nenhuma regra e em nenhuma norma, dúvida que justificasse pedir ao Tribunal Constitucional o cumprimento da Constituição, nem antes nem depois de assinar” o documento.

3. “É indiscutível que há preocupação social”

A ideia foi logo transmitida no início da declaração, depois de Marcelo Rebelo de Sousa ter falado da negociação em Bruxelas do Orçamento do Estado, com o Governo a ser confrontado com “a exigência de um défice mais baixo”, “previsões menos otimistas” e necessidade de conter medidas sociais ou o aumento de impostos indiretos, o que “aproximou o Orçamento do modelo anterior”, sublinhou. Ainda assim, o Presidente admite que o resultado final foi um diploma onde se nota “preocupação social dirigida para certas camadas da população”.