Ele chega tranquilo, sem pressas, o caminhar é feito de passos lentos. O contraste entre os pés que andam e o punho que acelera não podia ser maior. É de manhã, as nuvens não dão uma nesga de espaço para o sol espreitar e o refúgio para o que parece ser iminente lá fora é o hall de entrada de um hotel, nos arredores de Lisboa. Quando a conversa já vai a meio, a chuva começa a cair. O chão fica molhado, como estava a pista que, na semana anterior, fez Miguel Oliveira cair no Texas, estado norte-americano onde se realizou o Grande Prémio das Américas.

Com três corridas feitas no Moto2, a categoria intermédia do campeonato mundial de motociclismo, o português somou um 11.º lugar no Qatar, seguido de um 21.º na Argentina e de uma queda nos EUA. As contas apenas se fazem no fim dos 18 grandes prémios do circuito, lá para agosto, mas até agora não tem sido fácil. O Miguel que no ano passado discutiu o campeonato até à última corrida é o Miguel que hoje ainda se está a habituar a uma mota mais pesada e mais rápida e a pneus mais largos.

A subida de divisão implicou que o português ganhasse massa no ginásio e calo nas boxes. Agora partilha equipa com Danny Kent, o inglês que, em 2015, lhe roubou o título por seis pontos. “Não tenho de ter uma relação de grande amizade com ele. O companheiro de equipa é sempre o primeiro alvo a abater”, confessa. É por isso que o piloto de 21 anos acelera, arrisca e “desliga o botão” da consciência: “Se tivermos de cair, caímos”. Depois pode, ou não, magoar-se e, apesar de uma cicatriz lhe cortar as costas da mão esquerda, Miguel Oliveira garante que nunca lhe aconteceu nada do outro mundo. E não acha que o desporto que o leva quase até aos 300 km/h seja perigoso.

No fim de semana tens uma corrida em Jerez de la Frontera. Não devias estar a treinar?

Não. Para já, não é um desporto que se possa treinar a qualquer dia e a qualquer hora. Normalmente, temos testes programados com a equipa, um calendário, e ao longo do ano vamos cumprindo. Antes de uma corrida costumamos treinar à sexta e ao sábado e ao domingo temos a corrida. Fazemos muitos quilómetros durante o ano de mota. Em termos de regulamento, nem é permitido fazermos mais de 10 dias de testes durante a temporada.

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Sentes falta de um contacto diário com a mota?

Não, não. Nem por isso. Não é algo no qual se fique ainda melhor se praticarmos todos os dias. Tudo tem um seguimento e uma lógica, não é só andar por andar. Não é como no atletismo ou no futebol. O motociclismo é um bocado diferente, também por causa dos custos.

Por outro lado, sentiste que precisaste de encher no ginásio, quando passaste para o Moto2?

Sim, é uma mota mais pesada. Vamos mais tempo contraídos e cada vez mais pendurados na mota. Tive que ganhar um pouco de massa muscular, mas é natural. A passagem implicava que estivesse mais forte fisicamente. As corridas são ligeiramente mais longas.

Mas sentias-te franzino?

Claro que não. No Moto3 era simplesmente importante ter o menos peso possível, mas, ao mesmo tempo, estar bem preparado fisicamente. Era arranjar ali um compromisso entre as duas coisas. Havendo na Moto2 margem para ganhar peso, era só comer um bocadinho mais e treinar.

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O que te custou mais a habituar?

Talvez os pneus. São muito largos, um pouco complicados de entender onde há aderências ou não. Obviamente, ao longo das voltas, os pneus desgastam-se mais do que no Moto3. Tentar arranjar a tração com um pneu usado não é fácil. Exige muita prática. Ainda só fiz três corridas e ainda é muito cedo para tentar entender isso. Porque apenas temos isso nas corridas, ou seja, vem com a experiencia.

E a potência da mota, não?

Isso é algo a que nos habituamos muito mais facilmente. Mesmo em termos de visão, é ver a curva a chegar mais rápido. Basta umas voltas para nos habituarmos.

Até gostaste dessa parte, se calhar.

Sim, andar mais rápido torna tudo mais difícil [ri-se, levemente]. Principalmente agora na pista de Jerez, onde há muito pouco tempo para fazer muita coisa. Há muito trabalho com o corpo, tenho de me mexer muito mais nesta mota.

Mas, por outro lado, já conheces a pista desde miúdo [Miguel Oliveira participou no Campeonato Espanhol de Velocidade].

É verdade, conheço bem. A desvantagem é que também é a pista que todos conhecem melhor! Acaba por estar muito igualado, não levo nenhuma vantagem nisso.

E não foi estranho passar a ter o Danny Kent, que te ganhou a luta pelo título mundial, na mesma equipa?

É um companheiro como outro qualquer. Não tenho de ter uma relação de grande amizade com ele. Mas, felizmente, damo-nos bem, para manter a harmonia na equipa. O facto de termos sido rivais o ano passado até acaba por contribuir para o bom ambiente.

Já não se picam um ao outro?

Logicamente que sim. O companheiro de equipa é sempre o primeiro alvo a abater.

Mas não têm aquelas picardias, como se vê na Fórmula 1, por exemplo.

Aqui acaba por não haver número um e número dois. Até porque, nesta categoria, não podemos levar qualquer vantagem técnica. Os motores são iguais para toda a gente e o material ao qual tenho acesso é igual ao do Danny. Não há favoritismos e cada um tem a sua própria equipa técnica a trabalhar com ele. Os mecânicos são todos diferentes.

2016, Miguel Oliveira, Moto GP, moto, competição, desporto, Diogo Pombo,

Foto: Michael M. Matias / Observador

Como é que se despista o talento a um miúdo que começa a andar de mota?

Bem, acredito que não se nasce propriamente com um talento para andar de mota. Talvez tenha nascido com uma destreza motora diferente da dos outros miúdos. Estive em contacto com os motores desde muito cedo, com três anos, talvez. Antes, na barriga da minha mãe, já andava de mota. Acredito que isto acaba por nos fornecer outra propensão para desenvolvermos certas capacidades. No meu primeiro ano, fiquei em último lugar de todas as corridas em que entrei. Mas, com muito treino, depois fui evoluindo e nunca parei. Ainda hoje é assim. A parte do talento, a parte inata, tem de ter lá alguma coisa. Mas acho que, praticando, se evolui muito.

Não é preciso ser um bocado inconsciente com a velocidade, ao início?

Geralmente, temos de ser conscientes nas corridas, até certo ponto. Mas, na qualificação, quando fazemos a volta rápida, temos mesmo que desligar um botão e pronto, se tivermos de cair, caímos.

Já li algures que não achas que o motociclismo seja perigoso. Continuas a acreditar nisso?

Sim, é uma verdade. Nós andamos a alta velocidade, o meu fato tem airbag incorporado e, durante a minha carreira, só parti a mão, um braço e um dedo. São coisas banais. Qualquer miúdo pode partir um braço na escola, a brincar, sem fazer desporto. Se fizermos um rácio com os acidentes que acontecem, em comparação com o futebol, talvez o número de lesões seja mais “agradável” do que num desporto em que, à partida, é só preciso correr atrás de uma bola. Não considero perigoso.

Ou seja, já não tens medo de quedas?

Nunca tive. No dia em que pensar demasiado nisso arrumo, literalmente, as botas.

Até caíste na última corrida.

Sim. Tinha chovido no dia anterior, a aderência não era a mesma e, ao tentar ir buscar os pilotos que estavam à minha frente, forcei um bocadinho de mais a frente e pronto, perdi a aderência e caí. Foi uma queda sem relevância, mas ditou o meu resultado. Estava a fazer bons tempos, foi pena.

O teu pai já era piloto. A tua mãe achou piada quando começaste a seguir o mesmo caminho?

Ambos aceitaram. Felizmente, sem qualquer pressão do meu lado. Na altura em que comecei estavam os dois de acordo. Hoje a minha mãe ainda sofre um pouco, mas já se sabe controlar melhor.

Andas de mota no dia-a-dia?

Às vezes, quando vou à praia, mas é mais no verão, para evitar o trânsito. Vivo relativamente perto da praia [na Charneca da Caparica] e por isso utilizo a mota.

Gostas?

Faz-me impressão ter de andar devagar. Na estrada há que respeitar muito o meio envolvente, a aderência não é a mesma e tenho muito o instinto de piloto. Só que, na estrada, tento ao máximo evitar esse instinto. Tento ir mesmo devagar, mas não é fácil [ri-se].

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Onde é mais perigoso andar de mota: em estrada ou em pista?

É mais perigoso andar na estrada, claro que sim. Obviamente que, na estrada, não há escapatória. Há coisas que fogem ao nosso controlo. Há regras, mas nem todos as cumprem. Na pista estamos super-protegidos, num ambiente super-controlado, temos tudo ao nosso alcance. É claro que, num ambiente controlado, o desporto torna-se mais seguro.

Estás a tirar um curso de dentista. Foram os teus pais que te empurraram para os estudos, ou sempre quiseste conjugar as duas coisas?

Quando era mais novo, apesar de não pressionar, o meu pai tinha um certo cuidado em chamar-me a atenção. Só tinha as motas se tivesse boas notas na escola. Por isso, acabei por desenvolver um pouco essa responsabilidade de ter um plano B para quando terminasse a carreira. Hoje estudo a um ritmo muito mais lento do que estudava antes, quando acabei o secundário. Agora, na faculdade, é mais tranquilo. A minha carreira está em alta e dou-lhe mais atenção, é a prioridade.

Consegues estudar depois de uma corrida?

Não, isso é para esquecer, não entra nada. Mesmo se quisesse não conseguia.

E tens boas notas hoje em dia?

Às vezes sim, outras vezes não. A faculdade vai-se fazendo [ri-se, outra vez]. A prioridade, agora, não é ter boas notas, é andar em altas no meu desporto. É natural. Espero ter a faculdade concluída num prazo mais alargado do que todos os meus colegas, como é óbvio. Porque não tenho tempo para ir às aulas e estudar. É um curso muito prático, não posso estudar em casa e ir lá fazer os exames.

Ia-te perguntar o que achavas que ia chegar primeiro: o MotoGP ou o ser dentista. Mas a resposta já está dada…

Ao MotoGP, claro que sim!

Para lá chegares, o talento e o jeito pesam o mesmo na balança que o dinheiro?

Hmm, talvez, ao início. Pode ter havido talentos que se perderam por falta de apoios. É algo que no nosso desporto é uma luta para todos. Desde que me iniciei que tive essa luta, ainda hoje a tenho. Acabei por ter o “paitrocínio” a dar o empurrão na altura certa. Hoje em dia, um bom dinheiro compra um lugar numa equipa, sim. Infelizmente, alguns pilotos têm de pagar para correrem.

Estamos a falar de quanto?

De quantias a rondar os 300 ou 400 mil euros, por ano, para entrar numa equipa. O meu valor, felizmente, permitiu-me que nunca tivesse de pagar. Hoje sou pago para correr. Isso demonstra a minha capacidade técnica.

Consideras-te um sortudo?

Claro que sim. Também sempre tive um pai com muita atenção para a parte do negócio, sempre esteve em cima do assunto. Foi ouvindo as outras pessoas e tentou-se mexer muito bem para arranjar os apoios que eram precisos. E fomos conseguindo.