Béla é duro. Marta é suave. Béla é o motivador. Marta é a técnica. Dois estilos diferentes de treino que se completam e que fabricam campeãs. A primeira foi Nadia Comăneci, a última Simone Biles. O casal de treinadores (ambos com 73 anos) da equipa de ginástica artística dos EUA vai reformar-se após estes Jogos Olímpicos, depois de anos a formar um rol de campeãs. Nove delas olímpicas. Mas quem são eles?

HUNTSVILLE, TX - JANUARY 26: Martha & Bela Karolyi display banners for their facility as Karolyi Ranch was named an official training site for USA Gymnastics on January 26, 2011 in Huntsville, Texas. (Photo by Bob Levey/Getty Images for Hilton)

Marta e Bela Karolyi fotografados no Rancho Karolyi, em Huntsville, no Texas (EUA) depois do campo de treino ter passado a local oficial de treino da equipa de ginástica feminina dos EUA, em 2011.

O casal romeno de origem húngara tornou-se conhecido em 1976. Foi o ano em que Nadia Comăneci atingiu a perfeição. A ginasta treinada pelos romenos ganhou o ouro nos Jogos Olímpicos de Montreal (no Canadá) com uma performance nunca antes vista: somou dez pontos, a pontuação máxima que nem o marcador estava preparado para contabilizar. Era a primeira vez que uma ginasta o conseguia.

O talento natural era de Nadia, o treino foi de Bela e Marta e começou quando a romena tinha apenas 6 anos. Comăneci foi escolhida pelos treinadores para frequentar a escola de ginástica experimental que tinham acabado de fundar em Onesti (Roménia). Bela Karolyi procurava ginastas que pudessem treinar a partir de tenra idade e escolheu Nadia depois de a ver às cambalhotas no recreio da escola.

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O método de treino dos Károlyi não era completamente novo — partia das fundações do exigente programa de treino da Roménia criado nos anos 50 pelo Governo — mas o casal aprofundou-o nos anos 1960 e início dos anos 1970. Com o sucesso de Comăneci nos jogos de 1976, Bela foi nomeado treinador da equipa nacional de ginástica romena com o objetivo de preparar os jogos de 1980. Nadia Comăneci ganhou duas medalhas de ouro (barras assimétricas e cavalo) nesses jogos, mas isso não impediu o treinador de entrar em rota de colisão com a federação romena de ginástica. A tensão vinha detrás e aumentou quando Bela criou uma seleção composta maioritariamente por ginastas da própria escola em detrimento das atletas formadas por um conhecido clube de Bucareste.

Numa digressão da equipa romena de ginástica pelos Estados Unidos, em 1981, o casal Bela e Marta desertaram do regime ditatorial de Nicolae Ceaușescu (então presidente da Roménia) e instalaram-se em Houston, no Texas. E daí em diante, a história da ginástica artística norte-americana mudou.

As fabulosas dos Karolyi

Fundaram o Rancho Karolyi e foi dos confins do estado dos cowboys que mudaram a forma como a ginástica artística era praticada nos Estados Unidos. O sucesso demorou menos de uma geração a chegar. Mary Lou Retton, uma das primeiras ginastas norte-americanas que passou pelo rancho de treino, ganhou a primeira medalha de ouro na história da ginástica norte-americana nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984. Também fez um dez perfeito nas suas duas performances na barra e até batizou um movimento: a “cambalhota de Retton” (The Retton Flip).

Em 1990, um jornalista norte-americano chamou às seis melhores ginastas do rancho, o “Karolyi’s Six Pack” (qualquer coisa com o “pacote de seis dos Karolyi”). As ginastas desse grupo foram mudando, mas o nome ficou e aplicava-se às seis ginastas que passavam cerca de 45 horas por semana no ginásio com o exigente Bela e com a perfeccionista Marta.

Trabalho árduo, tenacidade, competitividade e rivalidade entre as ginastas. Características que o casal — sobretudo Bela — consideram uma parte essencial do programa de treino. “Estas miúdas não têm qualquer tipo de consideração por ninguém. Ninguém no mundo. Elas não se importam. Elas querem ganhar. Quem ficar parado, facilmente será intimidado [por elas]”, disse o treinador sobre o grupo considerado de “elite”, no esquema de treino que desenvolveu.

SAN JOSE, CA - JULY 10: Ragan Smith is congratulated by Bela Karolyi after she competed on the balance beam during Day 2 of the 2016 U.S. Women's Gymnastics Olympic Trials at SAP Center on July 10, 2016 in San Jose, California. (Photo by Ezra Shaw/Getty Images)

Bela Karolyi a saudar a ginasta Ragan Smith numa competição em julho passado. Bela é considerado o “emocional”

Bela era a estrela do casal. Foi ele que ficou com o maior quinhão do sucesso de Comăneci, uma fama de treinador excecional — efusivo e emotivo — que trouxe da Roménia para os EUA e que se estendeu até meados dos anos 1990. Kerri Strug (uma das fabulosas do rancho) ganhou o ouro em Atlanta, em 1996 nos EUA. Mas nos jogos seguintes, em Sidney, na Austrália (2000) o desempenho da equipa norte-americana ficou aquém das expectativas: quarto lugar. O domínio dos EUA sobre as soviéticas (que até 1992 lideravam na modalidade) estava a esmorecer.

How the U.S. Crushed the Competition in the Women’s Gymnastics Team Final The New York Times

Quadro do artigo do New York Times que mostra a evolução do desempenho dos EUA na ginástica em comparação com a União Soviética

A dupla que tinha mudado a modalidade para sempre nos EUA precisava de se reinventar. Bela disse que se ia retirar e Marta, que antes trabalhava nos bastidores, pode finalmente tornou-se a estrela do par. Em 2001, passou a coordenar a equipa de ginástica feminina norte-americana em substituição do marido e levou adiante o plano dele de tornar o método de treino da equipa ainda mais centralizado no rancho. As atletas deviam começar o quanto antes a treinar — por volta dos 9, 10 anos ou ainda mais novas — com os seus treinadores pessoais, mas deviam também passar algumas semanas por ano no rancho, em treino intensivo com o pessoal dos Karolyi. Marta seguia o método de Bela, mas não perdia de vista a sua dama, a técnica. O segredo? A inclusão. Criar uma bolha entre treinadores e ginastas durante os dias passados no campo de treino.

“Depois de instalar um sistema [método, forma de treinar] e depois de unir ginastas e treinadores, melhoramos todos os anos, temos melhorado a cada ano com este método”, disse Marta sobre o funcionamento da escola texana ao The New York Times.

US National Team coach Marta Karolyi with Jordyn Wieber,Alexnadra Raisman and Gabby Douglas of the USA during practice at the 2012 AT&T American Cup at Madison Square Garden in New York City March 2, 2012. The event , which takes place March 3, will feature all-around competition for both men and women, is part of the FIG's World Series Cup series and is one of four all-around World Cup events in 2012.AFP PHOTO/ TIMOTHY A. CLARY (Photo credit should read TIMOTHY A. CLARY/AFP/Getty Images)

Marta Karolyi com as ginastas Jordyn Wieber, Alexnadra Raisman e Gabby Douglas da equipa dos EUA, aqui num treino em 2012

Conhecida por ser mais racional que o marido, Marta é também mais suave no trato, mas isso não a impede de ter opiniões fortes — e de as manifestar — sobre as ginastas que chegam ao campo. Sobre Biles, achava que “era um pouco tonta” e “desengonçada”. Estávamos em 2011, Simone Biles não tinha brilhado no campeonato norte-americano de júniores (ficou em 14º em 24).

“Eu não sabia se seria capaz de fazer com que essa menina se concentrasse e fosse muito disciplinada”, disse Marta sobre a jovem Biles. Não sabia, mas ontem, depois de três mundiais seguidos, teve a confirmação final. Reza a lenda que a racional Marta poucas vezes mostra as emoções. E reza a história que só por duas vezes verteu lágrimas que o mundo visse. A primeira vez aconteceu quando Nadia Comăneci atingiu a perfeição em 1976. A segunda aconteceu 40 anos depois. Foi ontem, quando a não-estrela-Biles conquistou a segunda medalha de ouro no Rio 2016 e a equipa dos EUA decidiu que lhe iria fazer uma homenagem.

“Sou conhecida por ser muito dura. Senti, ‘O que é que me está a acontecer? O que é isto?'” disse sobre o momento em que se emocionou nos Jogos Olímpicos onde fechará com várias medalhas de ouro a sua carreira de treinadora.