António Ventinhas afirma em entrevista ao Observador que é normal que os inquéritos sobre criminalidade económico-financeira, como é o caso da Operação Marquês, sejam mais demorados do que os restantes. Devido à sua complexidade e a um conjunto diversificado de diligências que têm de ser executadas — muitas delas com autoridades judiciais internacionais. Recusa que caso a investigação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates não corra bem isso possa significar um contra-ataque do poder político para diminuir a influência do poder judicial. Defende a colaboração premiada como um instrumento eficaz no combate à corrupção e afirma, em relação às duras críticas que têm sido feitas ao juiz Carlos Alexandre por ter dito que não tem contas em nome de amigos, que o caso Sócrates não é o único em que um arguido é suspeito de ter contas bancárias em nome de amigos. “Houve pessoas que concretizaram logo essa relação [entre as declarações de Carlos Alexandre e o caso Sócrates] mas há mais casos — esse não é o único em que se fala sobre essa matéria. Houve vários casos mediáticos em que se colocou essa situação da verdadeira titularidade das contas. No quadro da criminalidade económico-financeira é normal investigar e saber quem são os titulares das contas bancárias”, diz.
“Os inquéritos da criminalidade económico-financeira são naturalmente demorados”
A imagem do Ministério Público (MP) fica posta em causa com mais este adiamento da conclusão da Operação Marquês, que deve ser o processo mais importante da história do MP?
Todos os cidadãos desejam que as investigações sejam concluídas da forma mais célere possível — e esse também é, naturalmente, o desejo dos magistrados do MP. Além do dr. Amadeu Guerra [diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal] e dos procuradores que têm o processo nas mãos, ninguém terá mais interesse em concluir rapidamente essa investigação.
Por que razão não é possível a conclusão?
Só conhecendo o processo é que poderia indicar as razões concretas para que o inquérito ainda não esteja concluído. Posso dizer que esse inquérito é de especial complexidade e que, na comarca de Lisboa, o tempo médio de conclusão de inquéritos genéricos é de 5 meses e meio, enquanto as investigações dos crimes económico-financeiros demoram em média 2 anos e meio a serem encerradas. Isto quer dizer que, por si só, a natureza dos crimes económico-financeira fazem disparar, e em muito, o prazo de conclusão dos inquéritos na comarca de Lisboa, nomeadamente no DIAP de Lisboa.
Quais são as estatísticas do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP)?
No que diz respeito às estatísticas do DCIAP, que tem processos ainda mais complexos, não conheço. Os dados que referi são do DIAP de Lisboa e fazem parte do relatório anual da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.
É importante referir que as investigações da criminalidade económico-financeira são mais demoradas devido a várias razões, como é sobejamente conhecido: problemas com o cumprimento de cartas rogatórias; demora no envio de informação por parte das autoridades internacionais no âmbito da cooperação judiciária; necessidade e problemas na realização de perícias; demora na análise da informação, etc. Estas são as razões que fazem com que as investigações, em termos genéricos, demorem a ficar concluídas.
Pormenorizando melhor as razões que apontou para os atrasos dos inquéritos relacionados com a criminalidade económico-financeira. Por exemplo, quanto tempo demora, em média, uma resposta a uma carta rogatória sobre contas bancárias dirigido a uma autoridade judiciária europeia?
Depende da complexidade do pedido ou do volume de informação que é necessário prestar mas, nos inquéritos de criminalidade económico-financeira, um simples pedido de informação no âmbito de um inquérito de especial complexidade facilmente pode demorar oito meses a um ano.
Há muitos anos que o MP se queixa da falta de meios, como a PGR fez no seu discurso de abertura do ano judicial. A falta de meios pode explicar o falhanço no cumprimento deste prazo de conclusão do inquérito?
Não posso afirmar isso porque não conheço o processo em concreto. O que posso afirmar é que os inquéritos de criminalidade económico-financeira deveriam ter mais recursos humanos. Mas, mesmo com muitos meios, esses inquéritos são naturalmente demorados — como acontece nos outros países europeus. Não depende apenas do Estado nacional onde a investigação começou mas também da celeridade e eficácia das respostas de outros Estados a quem se pede informação. Os meios, por si só, não permitiriam resolver todos os problemas da criminalidade económico-financeira porque há muitas das atividades criminosas que são realizadas fora do pais.
O diretor do DCIAP devia tomar medidas disciplinares perante esta falha no cumprimento do prazo? É uma exigência que a defesa de José Sócrates possa fazer?
Não me pronuncio porque não sei quais são as circunstâncias que rodeiam essa matéria. Se não foi cumprido um prazo, foi porque não foi mesmo possível. Ninguém poderá pensar que os magistrados que têm este tipo de processo terão falta de zelo ou não querem trabalhar afincadamente no processo.
“Sabemos que o poder político tem tomado medidas com base em casos devidamente identificados”
O MP, mais concretamente o DCIAP, tem consciência de que qualquer falha na Operação Marquês pode levar a um desequilíbrio entre o poder político e o poder judicial, com riscos para o nosso sistema democrático? Que pode levar a um enfraquecimento do poder judicial?
É um erro fazer essa avaliação com base num processo. O MP tramita anualmente cerca de 500 mil processos com poucos procuradores. Nesse sentido, deve ser feito um julgamento com base na atividade global desenvolvida. Infelizmente, sabemos que o poder político tem tomado medidas com base em casos pontuais e devidamente identificados.
Não pensa que o processo Sócrates tem uma natureza especial face aos restantes?
É um processo importante, como todos sabemos.
Insisto na pergunta: qualquer problema que venha a acontecer, como uma eventual acusação cair na fase de instrução e nem sequer chegar a julgamento, não provocará um desequilíbrio na relação do poder políticos com o poder judicial?
Depende dos dados concretos. Teremos que aguardar o desenrolar dos acontecimentos.
A visita do Presidente da República ao DCIAP foi uma declaração de apoio dias antes do fim do prazo para o encerramento do inquérito da Operação Marquês?
Não vou interpretar as palavras do sr. Presidente da República. Do ponto de vista institucional, o MP é uma instituição que terá sempre de ter apoio do poder político ao mais alto nível, uma vez que é essencial para a administração da Justiça. Pode haver processos que correm melhor, outros que correm pior, mas essa é outra questão. Agora, tem sempre de haver o apoio do poder político.
“Visita de Marcelo pode ser vista como um apoio no combate à corrupção”
Obviamente que, em termos de relações institucionais, deve existir uma relação de entreajuda entre os diversos poderes que compõem o Estado. A questão reside no facto de esta ter sido a primeira vez que um chefe de Estado decidiu visitar as instalações do DCIAP — e logo a poucos dias do fim do prazo para a conclusão da Operação Marquês que todos sabiam que não seria cumprido. Marcelo Rebelo de Sousa não foi à Procuradoria-Geral da República. Foi ao DCIAP.
O DCIAP faz parte da Procuradoria-Geral da República.
Mas as instalações são diferentes. A sede da PGR é na rua da Escola Politécnica, enquanto o DCIAP tem instalações na rua Gomes Freire.
Sim. As funções do DCIAP prendem-se essencialmente com o combate à criminalidade económico-financeira mais grave e complexa. As pessoas quando pensam no DCIAP só pensam em um ou dois processos. Certo é que o DCIAP tem muitos outros processos. A visita do sr. Presidente da República pode ser vista como um apoio ao combate à criminalidade relacionada com a corrupção, fraude fiscal ou branqueamento de capitais. Mas, no espetro político, não há ninguém que recuse combater a corrupção. Todos os partidos políticos têm nos seus programas uma alínea para o combate à corrupção.
Como interpretou as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a necessidade de um pacto para a Justiça entre os diferentes operadores judiciários para contrariar uma “sedimentação do bloco central de interesses” na área da Justiça?
O Presidente da República tem tido uma atividade muito mobilizadora da sociedade portuguesa — e o discurso para a área da justiça tem seguido essa regra. No que diz respeito ao pacto da Justiça, acho positivo o consenso entre os operadores judiciários. E já existem vários consensos. A questão reside na execução que cabe ao poder político. Por exemplo, é consensual que o Ministério da Justiça necessita de um sistema informático unificado, seguro e fiável — neste momento, não existe; é consensual que, para combater a falta de celeridade dos tribunais, é necessário mais funcionários judiciais — faltam mais mil. Outras questões poderia aqui mencionar mas nenhuma tem seguimento por falta de investimento do poder político.
A justiça nunca foi encarada como uma prioridade do poder político?
Digo isso regularmente. Felizmente, o sr. Presidente da República ousou dizer a verdade. Temos ouvido o poder executivo dizer regularmente que a justiça é uma grande prioridade, que é um pilar do Estado, mas essas declarações não têm consequências práticas.
Também não é uma prioridade do atual governo?
Também não.
Não será este governo que irá resolver os problemas da justiça?
Em termos de prioridade que é dada à área da justiça, não me parece. Vamos aguardar pelo Orçamento do Estado. Depois logo se verá.
“Há mais casos de arguidos com contas bancárias em nome de outras pessoas”
O juiz Carlos Alexandre tem sido duramente criticado pela entrevista que concedeu à SIC, muito por causa das declarações de que não tinha contas bancárias em nome de amigos, no que foi visto como uma alusão ao processo Sócrates. O MP e a investigação da Operação Marquês foram prejudicadas indiretamente com as críticas feitas ao juiz?
Tem sido feita essa interpretação mas já houve condenações em diversos casos em que os arguidos tinham contas em nome de outras pessoas.
Quer individualizar os casos?
Há vários casos em que os arguidos não eram os titulares das contas sob sob suspeita. Há vários casos.
Portanto, não concorda que as declarações do dr. Carlos Alexandre tenham qualquer relação com o caso Sócrates?
Mas não me pronuncio sobre se o sr. juiz Carlos Alexandre se referiu à pessoa A ou à pessoa B. Isso são interpretações que não faço.
“Quem é contra a colaboração premiada também não queria que o MP tivesse acesso às contas bancárias dos arguidos”
O juiz Carlos Alexandre defendeu a criação do instrumento de colaboração premiada porque permitiria uma Justiça mais célere e eficaz, quebrando, por exemplo, o pacto de silêncio que existe na criminalidade ligada à corrupção. Concorda?
A colaboração premiada é um instrumento muito eficaz e é utilizada em países que têm tido muito sucesso no combate à corrupção. Aliás, é costume elogiar-se em Portugal os sistemas judiciais internacionais que são muito céleres. Mas, quando se propõe a adoção de mecanismos que tornam esses sistemas mais rápidos, como a colaboração premiada, logo muitos dizem ‘Ai, isso não’.
Se a colaboração premiada existisse no nosso enquadramento legislativo, a Operação Marquês já teria terminado?
Não sei. Não conheço o processo concreto. O que posso dizer é que no Brasil, por exemplo, o mecanismo de colaboração premiada é essencial para resolver os casos de corrupção e de criminalidade organizada. O combate à máfia nos Estados Unidos ou em Itália também foi feito com recurso a estes regimes da colaboração premiada.
Quando se fala da colaboração premiada refere-se sempre o Brasil e as condenações conseguidas na Operação Lava Jato. Contudo, a comunidade jurídica portuguesa, nomeadamente os advogados, olha sempre com desconfiança para esse instrumento por poder colocar em causa o Estado de Direito e classificam a mesma como uma medida típica de países da América Latina.
As pessoas que dizem isso são as mesmas que contestavam há quatro anos a alteração legislativa que fez com que as declarações do arguido em interrogatório pudessem valer em julgamento. São as mesmas pessoas.
Os mesmos advogados, quer dizer.
Pois… Diziam coisas impensáveis, como por exemplo, contestar que, quando alguém falasse perante um juiz de instrução, um procurador e o seu advogado, em declarações gravadas, que isso pudesse valer alguma coisa em julgamento. Aliás, um conjunto de juristas e professores respeitáveis, em audiência com o sindicato, chegaram a dizer precisamente que isso era uma medida típica de um país da América Latina, quando isso se aplicava em países anglo-saxónicos. Há que esclarecer um equívoco que costuma existir sobre a colaboração premiada. Muitas pessoas pensam que esse mecanismo se resume a um testemunho de a contra b — sendo este último condenado por causa desses testemunho. Não é nada disso. Em primeiro lugar, a colaboração premiada é feita com quem faz parte da associação criminosa e tem um conhecimento direto dos atos. De forma a quebrar o pacto de silêncio que existe entre todos, é necessário premiar quem queira falar.
Não é só “apontar o dedo”.
Exatamente. Em muitos casos, os colaboradores premiados dão muita prova que é difícil de obter. Fornecem provas documentais essenciais para reconstruir a verdade material do caso, como por exemplo extratos bancários, números de contas bancárias, documentos de compra e venda de bens, certificados da titularidade de sociedades offshore, etc. Essas provas são essenciais para reconstruir a verdade material de casos relacionados com crimes como corrupção, fraude fiscal ou branqueamento de capitais Essa mensagem que se pretende passar de que a colaboração premiada coloca em causa o Estado de Direito é uma forma de impedir a implementação de mecanismos de combate à corrupção. Isso faz parte de uma estratégia, como aconteceu há uns anos, das mesmas pessoas que queriam que o MP fosse impedido de ter acesso às contas bancárias dos arguidos.
Tendo em conta a cultura jurídica muito ‘garantística’ que existe em Portugal, é possível que o mecanismo de colaboração premiada seja implementado a curto prazo em Portugal?
Não acredito que o seja. A mais longo prazo, talvez. Há um caminho e um debate que têm de ser feitos.