Está aí o terceiro veto em meio ano de mandato: o Presidente da República devolveu esta sexta-feira ao Governo o diploma que permitia o acesso a contas bancárias com saldos acima dos 50 mil euros. Marcelo considera que esta alteração na lei seria de uma “patente inoportunidade política“, devido ao sensível processo de consolidação da banca portuguesa, à necessidade de não abalar a confiança de depositantes e investidores e, no fundo, a um excesso de zelo que iria impor.

Marcelo não aceita o álibi de Bruxelas e acusa o Governo de ir além do que exigem as diretivas comunitárias. Isto porque o alargamento desta alteração na lei “a portugueses ou outros residentes, incluindo sem qualquer atividade fiscal ou bancária fora de Portugal (…) não era imposto por nenhum compromisso externo.”

Muito zelo de ou lado, pouco de outro. Em sentido inverso, atenta Marcelo, a lei “não exige, para sua aplicação, qualquer invocação, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, designadamente, de indício de prática de crime fiscal, omissão ou inveracidade ao Fisco ou acréscimo não justificado de património. “

O chefe de Estado lembra também que o sigilo bancário atualmente não é intocável, pois “existem já numerosas situações em que a Autoridade Tributária e Aduaneira pode aceder a informação coberta pelo sigilo bancário, sem dependência de autorização judicial, nomeadamente quando existam indícios de prática de crime em matéria tributária, de falta de veracidade do declarado, de acréscimos de património não justificado.”

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Como o Observador noticiou no início da semana, Marcelo socorreu-se ainda do parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados, de 5 de julho de 2016, que “questionara a conformidade do novo regime, na parte em causa, em especial com o princípio constitucional da proporcionalidade” e que o Presidente considera não ter sido “ultrapassada com os ajustamentos pontuais introduzidos na versão definitiva do diploma, conforme esclarecimento divulgado pela mesma a 13 deste mês“.

Por outro lado, Marcelo quer que o tema seja mais discutido pela sociedade portuguesa, criticando o facto de o diploma não ter sido precedido de um “indispensável e aprofundado debate público, exigido por uma como que presunção de culpabilidade de infração fiscal de qualquer depositante abrangido pelo diploma, independentemente de suspeita ou indício.”

O Presidente justifica ainda o veto com a conjuntura pouco favorável da banca portuguesa, identificando “dois problemas cruciais, entre si ligados, [que] dominam a situação financeira e económica nacional.” Um dos problemas, adverte Marcelo, é estar “em curso uma muito sensível consolidação do nosso sistema bancário”, que está ainda “intimamente associado” a um outro obstáculo: o da “confiança dos portugueses, depositantes, aforradores e investidores, essencial para o difícil arranque do investimento, sem o qual não haverá nem crescimento e emprego, nem sustentação para a estabilização financeira duradoura”.

É por isto que Marcelo considera “um fator negativo e mesmo contraproducente, para a presente situação financeira e económica nacional, a adoção do novo regime legal, na parte em que não corresponde a compromissos europeus ou internacionais.” Daí que trave a lei “antes mesmo de se equacionar as obrigações da não-vinculação externa, da necessidade, retroatividade e proporcionalidade do novo regime, do seu cabimento constitucional, da comparação internacional, ou de escasso debate público.”

Este é um veto há muito anunciado. Logo em agosto, ainda antes das últimas alterações ao projeto inicial das Finanças — que passou a incidir apenas em contas acima dos 50 mil euros — Marcelo Rebelo de Sousa avisou que esta lei “não teria acolhimento algum”.

No início desta semana, o Público adiantava que Costa deixaria cair o projeto em caso de veto presidencial. O primeiro-ministro podia sempre fazer a medida seguir por via da Assembleia da República — através de uma proposta de lei do Governo ou com um projeto de lei da bancada socialista –, mas aí precisaria sempre do apoio do Bloco de Esquerda e do PCP. Logo, haveria um problema: a oposição dos comunistas. “A devassa total não é acompanhada pelo PCP”, afirmou Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP.

Ainda esta quinta-feira, na conferência de imprensa no final do Conselho de Ministros, o próprio Governo admitia que o Presidente ia vetar. A ministra da presidência Maria Manuel Leitão Marques mostrava pouca fé na promulgação da lei: “Aguardaremos a devolução do diploma pelo senhor Presidente da República e as razões por ele invocadas para rever a nossa posição, sendo que as duas primeiras partes [acordo com os Estados Unidos e transposição de uma diretiva comunitária] terão que ser naturalmente regulamentadas com caráter de urgência, tendo em conta as obrigações internacionais do Estado nessa matéria e também as consequências que adviriam da não-regulamentação para os bancos portugueses”.

O terceiro veto

Este é já o terceiro veto de Marcelo em apenas meio ano de mandato. Até agora o Presidente da República vetou, em maio, um decreto que introduzia a possibilidade de recorrer à gestação de substituição (promulgando depois, já com alterações) e, em julho, travou o diploma que alterava os estatutos e as bases de concessão da STCP e da Metro do Porto.

O antecessor de Marcelo, Cavaco Silva, demorou quase um ano e meio para chegar ao segundo veto (aconteceu só em agosto de 2007), depois de um primeiro veto a 2 de junho de 2006, três meses após ter tomado posse. Nessa data, travou a lei da paridade.

No entanto, ainda é cedo para dizer que Marcelo está a ter um ritmo de recordista dos vetos. O verdadeiro recordista de vetos, Jorge Sampaio, só utilizou essa figura constitucional 12 vezes no primeiro mandato. Mário Soares fê-lo sete vezes e Cavaco Silva 15. O que a história diz é que, em regra, os Presidentes são mais comedidos no primeiro mandato: Soares fez ao todo 37 vetos, sendo que 30 foram nos últimos cinco anos; Sampaio fez 75 vetos, dos quais 63 foram no segundo mandato; e Cavaco manteve-se regular com 15 vetos no primeiro e 10 no segundo.