O Presidente falou apenas sete minutos no dia da República, na varanda dos Paços do Concelho, onde a Monarquia foi deposta há 106 anos. Foi o que bastou, para um discurso cheio de significados, com uma história por detrás, muito antiga, e que o próprio Marcelo Rebelo de Sousa gosta de recordar. Uma das primeiras discussões políticas em que Marcelo Rebelo de Sousa se lembra de ter participado em criança foi, exatamente, sobre República e Monarquia. Era apenas um miúdo, estava em Esposende, na casa de verão do comendador António Santos da Cunha – presidente da Câmara de Braga –, grande amigo do seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa. Eram homens do regime, a quem se juntava Manuel Cardoso, presidente da Câmara de Fafe, que, contra a opinião de Baltazar, defendiam o regresso da família real à chefia do Estado.

Baltazar Rebelo de Sousa — que seria subsecretário de Estado de Salazar e ministro de Caetano — tinha-se afastado das ideias monárquicas em 1951, quando se realizou o III Congresso da União Nacional, em Coimbra. Vários setores do regime debatiam, nessa fase, o regresso à Monarquia e foi então que Salazar se impôs ao dizer que a “monarquia não é um regime, é apenas uma instituição”. Nessa ocasião, Marcello Caetano rompia com os monárquicos do regime e por arrastamento Baltazar Rebelo de Sousa passava de monárquico a republicano. Seria assim, por influência paterna, que o pequeno Marcelo Nuno — hoje Presidente da República — se tornaria republicano para toda a vida.

Para se ler o primeiro discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no 5 de Outubro, quando ele refere que a forma republicana do regime está arrumada há mais de 50 anos, era a isto que o Presidente se estava a referir. A questão estaria arrumada pelo menos desde o congresso da União Nacional, em 1951.

Naquela discussão, em criança, Marcelo intrometeu-se na conversa dos homens, mas estes demonstraram-lhe que a I República tinha sido um caos. Marcelo terá contra argumentado com as mais caóticas ainda guerras civis entre miguelistas e liberais no século XIX. Esta quarta-feira, o Presidente Rebelo de Sousa, fez um discurso onde nunca invocou os defeitos da I República original, mas apenas os valores que lhe estavam subjacentes. Depois projetou-os para a atualidade para explicar e justificar o afastamento do povo dos políticos. Um pouco à imagem do discurso das “elites” no 10 de junho. Finalmente, Marcelo projetou esses ideais para o que deveria ser o comportamento dos titulares de cargos públicos. “Humildade” e “frugalidade”, contra o “deslumbramento”, que ele viu acontecer desde o Estado Novo, que afastam os cidadãos da política por causa da sucessão de “casos”.

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Republicano sim, mas não fechou o discurso com o tradicional “viva a República!”, como antes de si Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa tinha feito.

Os valores republicanos que continuam atuais

Na primeira parte do seu discurso, Marcelo Rebelo de Sousa enumerou “o essencial da mensagem ética” do 5 de outubro, uma mensagem democrática, que tanto deve agradar à direita como à esquerda. O princípio de que “todo o poder é temporário”, mas sobretudo, por oposição à Monarquia, que “não se transmite por herança nem comporta a escolha do sucessor”. Em República, portanto, “todo o poder político é limitado”, pelo controlo dos outros poderes, mas também “sempre pelo povo”.

Num momento único da política portuguesa em que a composição parlamentar que suporta o Governo não corresponde às forças políticas mais votadas nas eleições, Marcelo disse que o poder político deve “preocupar-se com a proximidade relativamente à fonte da legitimação”. Poderá ser um aviso à navegação socialista no caso de o Presidente detetar que o Governo se está a afastar dos eleitores (ou seja, Marcelo está atento às sondagens e aos movimentos sociais). Mas também serve, em parte, para avisar a direita, que por causa dos protestos de “usurpação” após as eleições de 2015 cabe na definição citada na intervenção de que o poder político “não é propriedade de ninguém, pessoa, família, classe, partido, grupo cívico, cultural ou económico”.

Contra a promiscuidade entre poder político e económico

Os avisos mais claros começaram depois. Marcelo Rebelo de Sousa usa há muito um truque comunicacional que serve para afirmar o contrário daquilo que está a dizer, como nesta frase: “Está vivo o princípio de que todo o poder deve evitar confusão ou promiscuidade com o poder económico, assim garantindo a sua isenção e credibilidade”. O Presidente evoca o princípio, para sublinhar uma realidade que em muitas situações funciona ao contrário: a confusão e a promiscuidade com o poder económico têm sido marcas polémicas do regime democrático ao longo de muitos anos.

A juntar às questões éticas republicanas, o Presidente enumerou os “direitos económicos, sociais, culturais” e pessoais a que se juntam os direitos políticos como uma marca do republicanismo. Ou seja, o lado social da “correção das desigualdades”, porque “a liberdade em pobreza é condicionada, menos livre”.

Mesmo na questão religiosa, que lhe seria cara, o Presidente não falou dos excesso da República, mas sim das virtudes. Foi claramente um discurso para não alimentar cisões políticas e sociais. Neste aspeto, Marcelo preferiu salientar “que separar a Igreja do Estado não e o mesmo que impor padrões que negue a liberdade de crença e religião”.

Desconfiança: o “cansaço” dos portugueses em relação aos “casos”

O que ficará deste discurso para o futuro será esta parte. Se o 5 de Outubro “permanece vivo” nos valores que o Presidente acabara de elencar, então, perguntava Marcelo, “porque razão os portugueses desconfiam da política, dos políticos, das instituições, escolhem a abstenção o distanciamento crítico ou o alheamento cético?

Não será por preferirem a Monarquia, argumentou. “Essa é uma questão ultrapassada há mais de 50 anos”. O Presidente foi longe na argumentação ao perguntar se os portugueses querem regressar a uma ditadura (quase usando os argumentos que era utilizados a seguir ao golpe que depôs a I República e instaurou a ditadura):

Será que [os portugueses] querem regressar a uma ditadura aberta ou disfarçada, duradoura ou temporária, para cumprir as contas públicas, reforçar a autoridade, e garantir a segurança?”

Marcelo não o disse, mas no contexto internacional tem havido derivas populistas à esquerda e à direita, no sentido que acabara de explicar. Foi então que resumiu em duas ou três frases as causas que levam ao afastamento dos cidadãos da política, e que acabam por ser a génese desses populismos. Em Portugal, quem ouvir esta citação tem na cabeça de certeza muitos casos concretos para ilustrar os conceitos abstratos de Rebelo de Sousa:

A razão de ser de desconfianças e desilusões e descrença é outra. Tem a ver com o cansaço perante casos a mais de princípios vividos a menos. De cada vez que um responsável público se deslumbra com o poder, se acha o centro do mundo, se permite admitir dependências pessoais ou funcionais, se distancia dos governados, aparenta considerar-se eterno, alimenta clientelas, redes de influências de promoção social — económicas ou políticas –, de cada vez que isso acontece, é a democracia que sofre, é o 5 de Outubro que se empobrece ou esvazia”.

A rematar esta parte: “O exemplo dos que exercem o poder é fundamental sempre, para que o povo continue a acreditar no 5 outubro”.

A recomendação para os políticos de hoje: frugalidade e humildade

Quem esperava que Marcelo Rebelo de Sousa falasse da política quotidiana, da relação de forças entre os partidos, de “geringonça” ou do PDS/CDS, ficou desiludido. Em discursos como o 25 de abril, o 10 de junho ou agora no 5 de outubro, o Presidente da República prefere fazer intervenções de regime, de fundo e mais abstratas. Para falar do concreto e do dia-a-dia, Marcelo tem os dias em que desenvolve a sua agenda presidencial intensa.

A única referência a algo que soasse mais atual teve a ver com a referência a estes “anos de crescimento económico lento, de saída de crise difícil, de prolongados sacrifícios para muitos, de incertezas de incerteza na Europa e no mundo“. Ainda deixou uma crítica a Pedro Passos Coelho, quando disse que é “justo e pedagógico” voltar a fazer do 5 de Outubro “feriado”, para se dar “o exemplo constante de humildade, frugalidade, independência, de serviço dos outros, de todos os outros, mas com natural atenção aos mais pobres, carenciados, excluídos ou injustiçados”.

No fim do discurso, depois de uns curtos sete minutos, e de tantos elogios aos valores da República, Marcelo Rebelo de Sousa não gritou “Viva a República!”, como seria da praxe.