São anos de “efervescência surrealista” em Portugal, mas também de “claustrofobia profunda em termos culturais, políticos e de costumes”, classifica o curador Pedro Lapa. Daí que a exposição, centrada no trabalho fotográfico de Fernando Lemos entre 1949 e 1952, dê primazia não à linguagem surrealista mas aos temas fotografados: escritores, atores, artistas plásticos e ensaístas portugueses.
Intitulada “Fernando Lemos: Para um Retrato Coletivo de Portugal, no fim dos Anos 40”, a mostra será inaugurada nesta quarta-feira, 26, no Museu Berardo, em Lisboa, podendo ser vista até 31 de dezembro. Mais do que retratos de pessoas, procura mostrar o retrato coletivo de uma geração. “São retratos da solidão coletiva”, afirma Pedro Lapa.
“Estas fotografias recorrem à sobre-exposição, uma característica surrealista, tão desenvolvida por Man Ray e outros artistas”, explica o mesmo responsável, que é também diretor artístico do Museu Berardo. “As sobre-exposições permitem criar o movimento da interioridade da figura retratada sobre si própria. É um movimento tendencialmente isolado, profundamente interiorizado, sintomático de um quadro não só individual mas coletivo. Neste sentido, a exposição permite um retrato coletivo de uma geração, de um quadro mental e cultural do Portugal nesses anos.”
Emolduradas, distribuídas por várias salas do museu, estas fotografias a preto e branco, todas com título, são apenas uma parte do trabalho fotográfico de Lemos. Neste caso, mostram figuras bem conhecidas do século XX português.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Adolfo Casais Monteiro, Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, Jacinto Ramos, António Dacosta, Jorge de Sena e Mécia de Sena, Cardoso Pires, Mário Cesariny, Glicínia Quartin, Manuela Seixas e tantas outras. Quase todas desaparecidas, com exceções como José-Augusto Franca, que ainda recentemente participou numa conferência em Lisboa.
“Dentro da natural poética surrealista, Fernando Lemos buscava aspetos como o acaso objetivo, uma abstratização da fotografia, mas houve também a preocupação, muito curiosa, de começar a retratar as pessoas que faziam parte de uma teia de relações e cumplicidades do mundo do Fernando Lemos”, analisa Pedro Lapa.
“Não se trata de um arquivo a régua e esquadro, que complete a intelectualidade da época, isso nunca existe. Mas traça um quadro muito específico de uma geração intelectual, e bastante diversa, num período que deve ser dos mais depressivos da história portuguesa. No pós-guerra, na expectativa da construção de um mundo novo com que a Europa passa a viver, as perspetivas em Portugal não se abriram e o regime ditatorial endureceu as suas posições. O isolamento em que estes artistas estavam era profundamente penoso.”
Fernando Lemos nasceu em Lisboa a 3 de maio de 1926, estudou litografia na Escola de Artes Decorativas António Arroio e integrou os dois grupos surrealistas portugueses que se formaram na década de 40.
Em 1952, participou na mítica exposição de fotografias, óleos, desenhos e guaches ao lado de Marcelino Vespeira e Fernando Azevedo, na Casa Jalco, uma loja de móveis no Chiado. No ano seguinte, partiu para o Brasil e aí se estabeleceu.
“Ele só podia fazer uma coisa, que foi o que fez, emigrar definitivamente para o Brasil”, diz o curador da exposição. “Não sei se posso contar isto, ele contou-me. Ele e o Casais Monteiro, quando se foram embora, iam no barco, apanharam uma bebedeira de whisky e passaram o tempo inteiro, até perderem Lisboa de vista, a fazer manguitos à cidade. O Fernando Lemos regressa às vezes a Portugal, com muito gosto, mas nunca mais veio viver para cá, tal o trauma desta geração.”
O trabalho fotográfico do artista – durante muito tempo reconhecido apenas como pintor – só seria redescoberto no fim da década de 80, quando os negativos foram tratados e impressos. O Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian dedicou-lhe a primeira exposição, “À Sombra da Luz”, em 1994.
A complementar a exposição no Museu Berardo é exibido em sala escura um vídeo com o documentário Luz Teimosa, de Luís Alves de Matos, sobre Lemos. Notas biográficas dos retratados estão espalhadas pelas paredes. O público poderá ainda consultar livros escritos por alguns deles.