De todas as polémicas que rodearam o processo de nomeação da nova administração da Caixa Geral de Depósitos, acabou por ser a declaração de rendimentos a fazer sair António Domingues. Mas há outros casos que abalaram a nova gestão do banco do público e que vão continuar a dar que falar, até porque há requerimentos do PSD e do CDS a pedir documentação ao Governo, a António Domingues e aos reguladores. Uma das dúvidas que ainda está por esclarecer é a do acesso ou não a dados confidenciais da Caixa por parte do gestor quando ainda tinha vínculo ao BPI.

“Não tive em, nenhum momento, acesso a informação confidencial ou que violasse o sigilo bancário da Caixa. Tive a informação que é pública dos relatórios e contas e em cima disso, através do acionista e de forma protocolada, a administração da Caixa forneceu esclarecimentos e informação adicionais que no caso do BPI não seriam necessárias, se o relatório e contas da Caixa fosse tão completo quanto o do BPI. Mas havia aspetos de natureza geral que precisava de perguntar. Mas não tive, nem precisava de usar informação confidencial ou que violasse o sigilo bancário para fazer um plano estratégico.”

António Domingues, audição na comissão parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, dia 27 de setembro

“A mesma pessoa que não era administrador da Caixa e tinha condicionado até a decisão de aceitar ser presidente à solução que se encontrasse em Bruxelas para a recapitalização, acedeu a toda a informação privilegiada da CGD quando não tinha ainda qualquer responsabilidade formal nessa administração. E essa mesma pessoa, hoje, ao abrigo do sigilo, recusa-se a dar a conhecer ao Parlamento aquilo que ele próprio conheceu quando ainda nem era presidente da Caixa.”

Entrevista de Passos Coelho ao “Público”, 21 de outubro.

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“Não é verdade que tenha tido acesso a qualquer informação privilegiada da CGD para elaborar o plano estratégico que suportou as negociações do Governo português com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu” (…) Quem conhece o sector e tem experiência adequada sabe que a informação pública disponível era suficiente para a elaboração de tal plano.”

Resposta por carta de António Domingues, à entrevista de Passos Coelho, 23 de outubro.

António Domingues “sabe com certeza que quando se negoceia um plano tem que se ter, pelo menos, informação sobre a carteira de clientes e de créditos do banco. É preciso olhar para esta questão com mais seriedade. Estamos a falar de muito dinheiro dos contribuintes”. E “das duas uma, ou o plano foi negociado com Bruxelas com base no trabalho do atual presidente que não teve acesso à informação adequada e isso significa que é uma mistificação política, ou é um logro e vai ter de ser negociado outro plano”.

Declaração do presidente do PSD, 23 de outubro

O tema não era novo, mas voltou a marcar a polémica política sobre a Caixa Geral de Depósitos (CGD) por iniciativa do PSD, que aproveitou as respostas dadas pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu a eurodeputados que confirmam a presença de António Domingues em reuniões para discutir a recapitalização, quando ainda não estava em funções na Caixa e ainda era administrador do BPI.

Conflito de interesses e suspeitas de acesso a informação privilegiada, ou reservada, voltaram à superfície na semana passada. Luís Montenegro, o líder parlamentar do PSD, denunciou: “Domingues contratou uma consultora e advogados para o ajudarem no processo e partilhou com eles as informações a que teve acesso”, logo, “pode haver aqui um claro conflito de interesses”. Também o CDS, pela voz de João Almeida, pediu uma intervenção do Banco de Portugal para avaliar eventuais conflitos de interesse na gestão deste dossiê.

Recordando que António Domingues sempre argumentou ter usado apenas informação pública, ou menos, não reservada, Montenegro insiste: se a informação era pública deve ser facultada. O Observador foi tentar perceber se as suspeitas dos partidos à direita têm enquadramento legal e se os argumentos invocados por António Domingues são plausíveis, junto de analistas e pessoas que passaram pela gestão de bancos.

É possível preparar um plano, neste caso as linhas gerais, de recapitalização de um banco apenas com acesso a informação pública? A resposta é sim, mas é difícil, responde um antigo banqueiro. Um analista do setor bancário também admite que é possível, mas não com a necessária adequação à realidade específica do banco.

É certo que o que António Domingues negociou e conseguiu aprovar em Bruxelas e Frankfurt foram as linhas gerais da operação, que terão de ser materializadas num plano ao qual falta ainda a luz verde final.

Há componentes da anunciada recapitalização — 5.160 milhões de euros — que resultam de necessidades que são razoavelmente previsíveis e contabilizáveis com dados públicos, como a necessidade de reembolsar os CoCos (instrumentos de dívida subscritos pelo Estado), as exigências regulamentares, ou a reestruturação da operação a nível do número de balcões e de redução de trabalhadores. Mas o aspeto mais sensível desta operação — e que vale na estimativa conhecida 2.700 milhões de euros de dinheiro fresco do Estado — exige informação que está no coração do segredo bancário e que passa pelo crédito.

Os segredos do crédito

A concessão de crédito representa cerca de 60% do ativo de um banco e é uma dimensão absolutamente crucial para quantificar as necessidades de capital de uma instituição, uma vez que é também esta atividade que tem gerado as maiores perdas nos últimos anos. Ora, as operações de crédito e as relações comerciais entre um banco e os seus clientes caem na gaveta da informação que está mais protegida pelo sigilo bancário.

É certo, reconhecem os especialistas ouvidos pelo Observador, que há informação pública sobre o valor do crédito concedido, sobre o risco de incumprimento e nível de malparado e até existem dados sobre a segmentação do crédito concedido por setor e geografia e, também, sobre as provisões constituídas por cada banco para fazer face ao risco de perdas no crédito.

Há métricas médias que se aplicam ao setor bancário e benchmarks (valores de referência) que podem ser usados para fazer as contas. António Domingues tem a experiência e o know-how para o fazer – liderou a área financeira de um dos principais bancos portugueses durante anos — e recorreu a uma consultora, a Mckinsey, para apoiar o trabalho. Mas isso não permite chegar ao fundo do problema, defendem os especialistas ouvidos pelo Observador e que preferiram não ser identificados.

Se é verdade que os modelos que estimam as imparidades no crédito a particulares podem ajudar a estimar as necessidades de capital, com diferenças que não serão assim tão significativas de banco para a banco, a realidade é completamente distinta quando abordamos os clientes empresariais, e, em particular, os grandes devedores ou clientes de um banco.

“Posso ter dois alunos com uma média de 12, mas enquanto num este valor resulta de várias notas perto do 12, no caso do outro o valor médio pode resultar de notas muito altas e muito baixas”. O que este exemplo, invocado por um dos especialistas, mostra é que esta assimetria faz toda a diferença quando estão em causa grandes operações de crédito. E o diabo esconde-se nos pormenores.

Por um lado, cada banco tem o seu próprio modelo de avaliação de risco e a sua política de provisionamento. Por outro lado, o risco de incumprimento, a solidez e o nível de colaterais exigidos, a situação financeira do cliente e do setor onde opera, o seu plano de negócios ou de reestruturação, a capacidade financeira dos seus acionistas, são características que fazem de cada operação um caso único que exige o conhecimento específico que Domingues não pode ter tido, sem ter acesso a informação protegida pelo sigilo bancário.

O presidente da Caixa, entretanto demissionário, admitiu ter usado informação que não era pública (publicada), mas que seria pública, no caso do BPI, um banco cotado em bolsa. Em causa estará, por exemplo, mais informação sobre a carteira de crédito, designadamente ao nível da segmentação geográfica e setorial, que permite afinar melhor as aproximações e estimativas de imparidades e de necessidades adicionais de capital. E Domingues, já foi dito, teve conversas com o ex-presidente, José de Matos, e com o acionista, o Estado, que tem acesso a informação confidencial, designadamente ao nível do crédito, por via dos relatórios da comissão de auditoria. O gestor sempre negou ter tido informação sob sigilo bancário.

Por outro lado, nem sempre a informação reservada fica confidencial. Foi o que aconteceu em junho deste ano quando uma notícia avançada pelo Correio da Manhã revelou quem eram os maiores devedores da Caixa, especificando a dimensão dos empréstimos e o nível de imparidades registadas. A divulgação desta informação de 2015 corresponde a um caso flagrante de quebra do sigilo bancário, mas serve para ilustrar a tipologia de dados que é necessário ter para calcular de forma adequada as necessidades de capital de uma instituição.

A reforçar a tese do presidente demissionário da Caixa, está o dimensão da recapitalização proposta, num valor muito superior à expetativa do mercado. É um valor limite que comporta uma almofada para acomodar eventuais surpresas que possam emergir da auditoria aos créditos e imparidades que está a ser efetuada pela nova administração já com António Domingues aos comandos e com livre acesso a toda a informação reservada. Esta é a estimativa de perdas a que chegou o novo presidente e os seus consultores, com base na tal informação pública. Foi isso que Domingues explicou na audição parlamentar do final de setembro:

“O que está a ser feito pelo conselho de administração com o apoio da equipa de auditoria é um exercício rigoroso de avaliação das necessidades de imparidades adicionais para confirmar se o valor que eu estimei a partir de fora está correto. O valor pode ser igual, inferior ou superior. É o trabalho do conselho de administração determinar a cada momento as imparidades.”

Por outro lado, o que foi apresentado e aprovado por Bruxelas, antes de Domingues tomar posse, foram as linhas gerais de recapitalização da Caixa. O plano propriamente ainda não foi entregue, ainda que a sua aprovação seja considerada quase garantida, desde que cumpridas as condições pré-acordadas.

E o conflito de interesses?

Pela informação disponível, os especialistas ouvidos pelo Observador não consideram que o comportamento de António Domingues, na transição do BPI para a Caixa, configure uma situação de potenciais conflitos de interesses, pelo menos não na forma como estes estão definidos na legislação bancária e até nos critérios de avaliação de idoneidade dos gestores.

O conceito de conflito de interesses surge em regra associado a situações que envolvam decisões que beneficiem partes relacionadas, designadamente familiares. Outra situação que pode configurar conflitos de interesses é a ocupação em simultâneo de vários cargos de administração, critério que aliás foi invocado pelo Banco Central Europeu para aceitar nomes propostos para administração não executiva da Caixa, embora tenha prevalecido a avaliação da disponibilidade das personalidades para desempenharem as funções no banco do Estado.

É certo que a conduta do ex-vice presidente do BPI, que só deixou formalmente de ser quadro do banco mais de um mês depois de estar a trabalhar na recapitalização de um banco concorrente, pode ser criticável do ponto de vista ético ou deontológico.

Um potencial conflito de interesses entre as duas instituições poderia colocar-se, caso António Domingues tivesse tido acesso a informação confidencial da Caixa quando ainda era quadro do BPI, o que o gestor nega. Outro cenário em que a questão poderia ter mais relevância, seria se Domingues, depois de ter tentado negociar a recapitalização da Caixa em Bruxelas e Frankfurt, tivesse regressado ao banco privado, por fracasso no processo.

A questão poderá ainda vir a colocar-se, em tese, se o gestor, que entretanto se demitiu da Caixa, vier a trabalhar no futuro para um banco concorrente, porque em dois meses e meio de gestão e a trabalhar no apuramento de perdas adicionais na carteira de crédito, Domingues teve seguramente acesso a dados protegidos pelo sigilo bancário.

À partida, Domingues não voltará ao BPI, em relação ao qual terá condição de reformado a partir do início do ano.

Em relação à sua passagem pela CGD, um dos especialistas ouvidos pelo Observador assinala que o tema até poderia ser mais sensível para o lado do BPI, já que António Domingues levou consigo informação reservada sobre o banco privado no qual trabalhou durante mais de 20 anos.

Esta não é contudo uma situação nova na banca — Nuno Amado trocou o Santander Totta pelo BCP, para já não falar da ida da dupla Carlos Santos Ferreira e Armando Vara da Caixa para o BCP — e irá provavelmente repetir-se no futuro. E talvez a muito curto prazo, dependendo da escolha do Executivo para a administração da CGD.

Para evitar potenciais conflitos de interesses, os acionistas dos bancos podem sempre negociar cláusulas que travem a ida dos seus principais quadros para entidades concorrentes durante algum tempo, desde que estejam dispostos a pagar uma compensação.

As condições de Bruxelas, as condições de Domingues

De acordo com a cronologia revelada pelo próprio, na audição no Parlamento, depois de receber o convite para liderar a Caixa, no dia 20 de março e antes de dizer sim, o antigo vice-presidente do BPI pediu ao Governo que lhe proporcionasse reuniões com o Banco Central Europeu, Banco de Portugal e a Direção-Geral da Concorrência europeia.

Nesses encontros, Domingues quis saber quais eram as condições para conseguir fazer passar uma recapitalização da Caixa em Bruxelas, fora da restrição da ajuda do Estado. Esta classificação teria consequências desastrosas para o banco e para o setor financeiro português e António Domingues não aceitaria a missão com este cenário.

Uma destas conversas, segundo testemunhou, aconteceu a 7 de abril. O gestor ficou convencido que o plano de recapitalização era viável e avisou o Governo que podia prosseguir dentro das condições que lhe foram comunicadas:

  1. Um plano estratégico credível e consistente, sem ilusões.
  2. Um modelo de governo que garantisse a independência profissional dos gestores.
  3. Um sistema de remuneração e incentivos que fosse compatível com um do banco privado, para passar no teste do investidor privado.

Essas foram algumas das condições que acabou também por assumir como suas, para dizer sim à Caixa Geral de Depósitos. A lista, revelada no Parlamento no final de setembro, não incluía contudo aquela que viria a ditar a sua saída da Caixa e que à data não era pública: a não divulgação da declaração de rendimentos e património dos administradores.

Domingues depois aceitou o convite para liderar a Caixa, no dia 16 de abril, tendo logo comunicado ao BPI que se afastava de funções, até porque o banco não aceitaria que fosse de outra forma. Domingues revela, ainda, que entregou a carta de resignação do cargo de administração em maio, mas por razões que não consegue explicar esta só se torna oficial a 30 de maio. “Não achei que tivesse importância”, admitiu aos deputados da comissão de inquérito.

Uma avaliação que claramente não tem hoje a mesma leitura para os deputados do PSD e do CDS. Estas respostas de António Domingues foram dadas a um deputado social-democrata, Costa Neves, durante a audição na comissão de inquérito, mas o tema só suscitou protestos e críticas fortes esta semana, depois de as entidades europeias terem confirmado a existência de reuniões com Domingues quando ainda era quadro do BPI.

O PSD exigiu esclarecimentos do primeiro-ministro, António Costa. O CDS pediu a avaliação de potenciais conflitos de interesse por parte do Banco de Portugal.

Ora, este terá sido um dos critérios ponderados pelo supervisor, o Banco Central Europeu com o apoio do Banco de Portugal (BdP), na avaliação da idoneidade dos gestores nomeados para a Caixa Geral de Depósitos. Mais do que o tema do conflito de interesses, poderia estar em causa outro critério: o da influência indevida na avaliação da independência do gestor, previsto nas regras publicadas pelo BdP.

“Na avaliação deste requisito são tomadas em consideração todas as situações suscetíveis de afetarem a independência dos membros dos órgãos de administração e de fiscalização, nomeadamente, cargos que o interessado exerça ou tenha exercido na instituição de crédito em causa ou noutra instituição de crédito”.

Em qualquer dos casos, António Domingues passou no teste dos supervisores.