De manhã, o burburinho no Largo do Coreto contrastava com a pacatez de todos os dias. O presidente da Junta de Freguesia de Carnide (eleito pela CDU) cirandava de um lado para o outro, apressado, sempre de telemóvel no ouvido, desdobrando-se em entrevistas e contactos. Em redor, dezenas de moradores reuniam-se e conversavam não sobre a dívida, sobre futebol ou o estado do tempo como habitualmente, mas sobre o assunto do dia: os vários parquímetros instalados pouco tempo antes pela EMEL haviam sido retirados por funcionários da Junta (com a aprovação e uma “mãozinha” de quem lá habita) durante a noite de quarta-feira, madrugada dentro.

Palmira Pinto e Ana Dias, ambas sexagenárias, sentam-se à sombra num banco de rua. “Nasci cá e vivo cá. Sou daqui. Isto é a minha ‘terra’. As pessoas às vezes dizem que ‘vão à terra’, não é? Esta é a minha”, começa por dizer Palmira. Também ela esteve na reunião de quarta-feira à noite no auditório da Casa do Coreto. “Ontem reunimos, sim. Nunca vi aquele sítio tão cheio como ontem”, começa por recordar, detalhando depois o que lá se discutiu e o que à discussão se seguiu: “Foi calmo, foi calmo. Depois alguém lá ‘bichanou’ qualquer coisa ao ouvido do presidente [da Junta de Freguesia de Carnide] e ele disse-nos que a reunião tinha acabado e que os parquímetros seriam retirados. Toda a gente apoiou a decisão, claro.”

Para Palmira, a retirada dos “mealheiros” da EMEL foi um “espetáculo”. “Olhe, a noite estava boa, nem quente nem fria, e isto não é um espetáculo que se vê todos os dias, não é? [Risos] E os parquímetros lá foram retirados um por um, pronto. Depois alguém chamou a polícia mas, como se costuma dizer, foi tudo na boa e os polícias – que eram rapazinhos bons e entenderam a situação – resolveram levar a carrinha da Junta para a esquadra. Porquê? Para que ninguém roubasse os parquímetros ou os vandalizasse durante a noite”, explica.

Palmira, à esquerda, está no centro histórico de Carnide como na “terra”. Ana perdeu a conta há quantos anos trabalha no Largo do Coreto (Créditos: ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR)

[Cruza-se com Palmira e Ana no banco a vogal da Junta de Freguesia de Carnide, Natália Santos. “Fale do Orçamento, do Orçamento Participativo…”, atirou, seguindo depois largo acima.]

“Pois, é isso: nós vencemos o tal Orçamento e, até agora, não fizeram nada por nós. Sabe: sou comerciante aqui há muitos anos. E não sou contra os parquímetros da EMEL. Não é isso. Sou é contra a falta de condições aqui à volta. Isso é que é prioritário. Depois, se quiserem meter os parquímetros, que metam. Ninguém está contra isso; está é contra o resto”, garante Ana Dias. Mas e se a EMEL voltar a colocar os parquímetros em Carnide e não resolver “o resto”? “Acho que eles não vão voltar a colocar aqui os parquímetros, acho que não. Mas se colocarem… [Pausa] vamos ver, vamos ver. Vamos ter que continuar a lutar pelo que é melhor para nós”, garante.

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Palmira, tal como a vizinha Ana, não é contra EMEL nem a presença dos parquímetros em redor do centro histórico de Carnide. Mas afirma ter sido “surpreendida” pela presença destes “da noite para o dia”. “A mim ninguém me disse que os parquímetros da EMEL seriam colocados aqui. É verdade que vi pintarem aí uns retângulos no chão, mas achei que seria só para melhorar o estacionamento – porque há gente que faz uns estacionamentos de esguelha e mais ninguém consegue arrumar o carro. Um dia acordo, vou à janela, e vejo aí os ‘mealheiros’ da EMEL na rua. Não acho bem. Estão a começar a construir a casa pelo telhado.”

Porquê? Palmira explica: “É o que a Ana lhe disse e bem: nós vencemos o Orçamento Participativo, não é verdade? Mas as ruas continuam por melhorar – vê: está tudo esburacado! — e o parque de estacionamento que nos foi prometido continua por construir. Isto já é um castigo para arranjar lugar – às vezes tenho que estacionar num lugarzinho que só eu é que conheço –; se tiver que pagar, pior ainda: continuo sem lugar e ainda tenho uma despesa.”

Fábio Sousa: “Só nestas quatro ruas do centro histórico de Carnide a EMEL colocou doze parquímetros… Isto é uma brutalidade!”

Foi o próprio presidente da Junta de Freguesia de Carnide quem, via Facebook, apelou a “todos os moradores, comerciantes e parceiros” que comparecessem na Casa do Coreto. Discutir-se-ia a decisão “unilateral” da Câmara Municipal de Lisboa, que ativou os parquímetros da EMEL na passada sexta-feira, “uma atitude que demonstra o mais profundo desrespeito pela população e pela Junta de Freguesia de Carnide”, escreveria Fábio Sousa.

Esta manhã, e depois de retirados todos os parquímetros colocados no centro histórico, Fábio Sousa garantia estar “disposto a dialogar com a EMEL e a Câmara [Municipal de Lisboa]”. “Nós não acreditamos que não se encontre uma solução. Tem que se encontra uma. Vamos lutar até à última instância para que se salvaguardem os interesses da população de Carnide, concretamente a do centro histórico. Não nos esqueceremos dos compromissos que a Câmara assumiu, desde logo o da criação de um parque de estacionamento aqui no centro com capacidade para duzentos lugares. Este compromisso é de 2013 e continua por cumprir. Mais tarde, em 2014, a população uniu-se e venceu o Orçamento Participativo com um projeto de reabilitação das ruas. Isso também não aconteceu”, explica, acrescentando depois: “A retira dos parquímetros é, no fundo, uma tomada de posição da população e dos comerciantes do centro histórico de Carnide em relação ao que deveria ter sido feito e não foi.”

Fábio Sousa garante que a retirada dos parquímetros é uma “tomada de posição” contra os compromissos que a Câmara não cumpriu (Créditos: ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR)

O presidente da Junta de Freguesia garante que foi “surpreendido” pela decisão da EMEL e da Câmara. “Fomos surpreendidos na última sexta-feira. Esta população, que é lutadora, determinada, não se resignou com esta política de imposição. E decidiram retirar os parquímetros esta noite. É uma decisão que nós [Junta de Freguesia de Carnide] apoiamos na íntegra. Olhe à sua volta: aqui neste centro histórico de Carnide você sente-se como numa aldeiazinha no centro de Lisboa. Os moradores, os comerciantes, as associações que aqui se instalaram, todos sentem que não faz sentido a colocação dos parquímetros aqui. Sentem-se prejudicados. Não é assim que se desenvolve a economia local. Algumas destas lojas, por exemplo, são lojas históricas. Chega de matar as lojas históricas da cidade! O ter que pagar para estacionar aqui vai retrair o comércio”, explica.

A “surpresa” de Fábio Sousa é também a da Câmara Municipal de Lisboa, que entretanto deu indicações à EMEL para reinstalar imediatamente os parquímetros e para enviar “às autoridades policiais e ao Ministério Público toda a informação recolhida”.

Em comunicado, a Câmara Municipal de Lisboa explicou que a presença da EMEL no centro histórico de Carnide estava prevista há muito, tendo esta sido aprovada pelos órgãos municipais. “A implementação resultou da vontade de dar resposta positiva aos alertas de moradores para o agravamento da situação do estacionamento nesta zona”, lê-se no mesmo comunicado, onde é também explicado que a decisão teve o apoio de Fábio Sousa na reunião descentralizada de 11 de janeiro de 2017. “Esta decisão obrigou a empresa a rever o programa operacional, em prejuízo do investimento em várias outras zonas da cidade que aguardam a expansão da EMEL como forma de regulação do estacionamento”, afirmou ainda a Câmara Municipal.

Por sua vez, a EMEL garante que a população e a Junta de Freguesia de Carnide estavam informadas da colocação dos parquímetros no centro histórico. Em declarações à agência Lusa, Helena Carvalho, diretora de Institucionais e Cidadania da EMEL, disse “estranhar” a posição do presidente da Junta de Freguesia de Carnide, afirmando que o autarca não se manifestou contra quando se falou do assunto na reunião descentralizada ocorrida em janeiro. “Estive a rever as atas dessa reunião e não encontrei qualquer posição dele relativamente a este assunto”, explicou a responsável.

À Lusa, Helena Carvalho contou que a EMEL tinha desde janeiro a autorização do presidente de Fernando Medina para entrar no centro histórico de Carnide, “muito pressionada sob o ponto de vista do estacionamento”. “Quando há jogos de futebol [no estádio da Luz] os carros amontoam-se junto às habitações e esta população, que é idosa, se precisar de ir ao médico, nalguns casos tem de sair pela janela”, afirmou.

A responsável explicou ainda que a população foi informada pela EMEL, através de flyers e de um “pequeno jornal”, “onde eram explicadas as vantagens das alterações e a aconselhar [os moradores] a tratar do dístico de morador para estacionamento”. “Fizemos inclusive ações de sensibilização. Quando começaram as pinturas no chão é que os problemas começaram a surgir”, explicou. “Toda a gente estava informada. Parece-me que o presidente da Junta [de Freguesia de Carnide] mudou de opinião de janeiro para cá, provavelmente por outras questões que queria ver resolvidas na sua freguesia pela Câmara Municipal de Lisboa. Mas isso não é matéria da competência da EMEL”, acrescentou.

Não só os parquímetros foram retirados, mas igualmente alguns sinais de trânsito. Os últimos continuam sobre o chão. Os buracos foram pavimentados durante a manhã (Créditos: ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR)

Fábio Sousa reagiu às declarações da EMEL e da autarquia e garante que a Câmara Municipal de Lisboa sabia que a Junta de Freguesia de Carnide não concordava com a colocação de parquímetros no centro histórico, acusando tanto o presidente da EMEL como o presidente da Câmara Municipal de Lisboa de “mentirem” e de “mostrarem má-fé”.

O presidente da Junta de Freguesia de Carnide explicou que esta se “pronunciou negativamente há dois meses” num e-mail [que trazia dobrado no bolso e prontamente entregou ao Observador] enviado à Câmara de Lisboa a 10 de fevereiro e que existe inclusivamente uma petição assinada por mais de 2500 habitantes de Carnide. “Por isso, não faz sentido nenhum as declarações proferidas pela EMEL”, afirmou, aproveitando a oportunidade para lançar um desafio a Fernando Medina: “Que faça aquilo que nós pedimos para fazer, que é receber-nos com carácter de urgência, em vez de vir fazer declarações completamente despropositadas”.

Defendendo que “qualquer tipo de alteração significativa na vida das pessoas” deve ser “alvo de discussão pública”, o presidente frisou que “isto não é uma política do quero, posso e mando, de imposição a favor de uma política de favorecimento da EMEL”.

O próximo passo, garante, é a devolução dos parquímetros, ainda durante a tarde desta quinta-feira. “Estão à guarda da Junta. Hoje mesmo vamos entregá-los. Até porque nós não os queremos. E se eles fazem assim tanta falta à Câmara e à EMEL, vamos entregá-los. Não estão vandalizados – até porque a população de Carnide é civilizada e retirou-os com todo o cuidado. O que vai acontecer é que os parquímetros vão ser recolocados, esta tarde, nos Paços do Concelho. Daí em diante, a Câmara que faça o que entender com eles. O que esperamos é que não faça com outras freguesias o que fez connosco”, explicou.

O telefone de Fábio Sousa toca volta e meia durante a conversa. Antes de voltar em passo apressado à sede da Junta de Freguesia de Carnide, atirou: “A população tem-me elogiado a determinação da Junta. É verdade que têm receio que nos aconteça alguma coisa, mas estão solidárias e sentem que fizemos o que tinha que ser feito. Só nestas quatro ruas do centro histórico de Carnide a EMEL colocou doze parquímetros… Isto é uma brutalidade!”