O Ministério Público (MP) já abriu uma investigação criminal?

Sim. O inquérito foi aberto formalmente esta segunda-feira, 19 de junho, nos serviços do MP de Figueiró dos Vinhos. De acordo com a procuradora-geral Joana Marques Vidal, o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Leiria avocou o inquérito.

Contudo, desde domingo, dia 18 de junho, que uma equipa de três magistrados estava em Pedrógão Grande a acompanhar no terreno as operações de socorro e, acima de tudo, o trabalho que a Polícia Judiciária (PJ) e o Instituto de Medicina Legal realizaram de localização e sinalização dos 64 corpos das vítimas.

Essa equipa foi enviada por Euclides Dâmaso, líder do MP no distrito judicial de Coimbra e que esteve em contacto com Almeida Rodrigues, diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ), desde a noite de sábado.

Quais são os crimes que estão a ser investigados?

A abertura de um inquérito criminal é obrigatório sempre que se verifica um óbito para verificação da causa da morte. Não tem que necessariamente de existir a suspeita concreta do crime de homicídio ou a imputação das suspeitas criminais contra alguém em concreto.

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“Tudo aquilo que diz respeito ao incêndio, às suas causas, às suas consequências irá, naturalmente, ser objeto desse inquérito”, afirmou esta quinta-feira Joana Marques Vidal.

O MP e a PJ estão a investigar a suspeita do crime de incêndio florestal?

Para já, não. Todos os indícios recolhidos pelas equipas da PJ, que é o órgão de polícia criminal deste processo, que foram para o terreno ainda no sábado, dia 17 de junho, apontam para uma causa natural: trovoada seca potenciada por condições climatéricas anormais. Foi nesse sentido que o direto nacional Almeida Rodrigues se pronunciou publicamente ainda no domingo, dia 18 de junho, depois das equipas mistas da PJ, compostas por especialistas em fogos florestais e do Laboratório da Polícia Cientifica, terem chegado a essa conclusão provisória. “A PJ, em perfeita articulação com a GNR, conseguiu determinar a origem do incêndio e tudo aponta muito claramente para que sejam causas naturais. Inclusivamente, encontrámos a árvore que foi atingida por um raio”, afirmou então o líder da Judiciária. A árvore fatídica foi localizada no sítio de Escalos Fundeiros.

As declarações do presidente da Liga de Bombeiros sobre fogo posto mudaram a convicção da Judiciária?

Não. De acordo com fonte oficial da PJ, os indícios científicos na posse dos investigadores apontam claramente para uma causa natural. Contudo, a Judiciária vai chamar Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros e presidente da Assembleia-Geral do Sporting Clube de Portugal, para fundamentar a sua opinião e disponibilizar todas os indícios que tem em seu poder sobre a suspeita de fogo posto. “O incêndio teve origem em mão criminosa”, afirmou na manhã desta quarta-feira na TSF, tendo mais tarde, em reação à pronta resposta da PJ, acrescentado: “Aquilo que eu disse, assumo até às últimas consequências. Tive acesso a dados que me levam a pensar assim. Estou muito satisfeito por a PJ ter aberto um inquérito”, afirmou.

Refira-se que o inquérito não foi aberto na sequência das declarações de Jaime Marta Soares. Já tinha sido aberto no MP de Figueiró dos Vinhos, como o Observador noticiou em primeira mão este domingo, e foi avocado pelo DIAP de Aveiro. Será nos autos desse inquérito, que agora estão nas mãos da PJ, que o presidente da Liga dos Bombeiros prestará testemunho.

Ministério Público abre inquérito criminal à tragédia de Pedrógão Grande

O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) também já terá determinado os pontos exatos onde terão ocorrido trovoada seca na zona de Pedrógão Grande e enviado os dados para a PJ. “Tivemos a indicação do ponto exato, agora vamos ver se há evidência ou não, estamos a fazer o processamento dos dados do radar e da rede de descargas elétricas para determinar a existência de descargas relacionadas com a deflagração do incêndio”, afirmou o presidente Jorge Miguel Miranda ao Observador.

Além de fogo posto, que outro tipo de crimes podem o MP e a PJ investigar?

Em teoria, podem ser investigados ilícitos criminais que configuram situações de negligência por parte das autoridades públicas que têm a responsabilidade assegurar a proteção da comunidade, assim como o combate ao fogo florestal e o socorro das populações.

Quais são?

Tendo em conta a trágica morte de 64 pessoas e os mais de 250 feridos, os crimes de negligência em causa podem ser os seguintes:

  • Homicídio por Neligência – art. 137.º do Código Penal com pena de prisão máxima até aos 3 anos ou 5 anos em caso de negligência grosseira
  • Ofensa à Integridade Física por Negligência – art. 148.º do Código Penal com pena de prisão até 1 ano ou 2 anos se resultar da negligência ofensa à integridade física grave

Que exemplos de eventual negligência poderão ser investigados?

Há três situações que têm sido noticiadas nos últimos dias que vão ser investigadas:

  • O não encerramento atempado da Estrada Nacional 236-1 (a chamada ‘Estrada da Morte’ onde morreram mais de 40 pessoas) por parte da GNR. Há mesmo testemunhos que têm sido publicados na comunicação social que indiciam que os militares da Guarda terão conduzido viaturas para EN 236-1, depois de terem encerrado o IC 8.
  • O sistema de comunicações SIRESP voltou a falhar no sábado dia 17, tendo afetado as comunicações de socorro. O semanário Expresso noticiou que o sistema de comunicações de emergência esteve ’em baixo’ na zona de Pedrógão Grande entre o meio da tarde sábado e as 8 da manhã de domingo — altura em que a cobertura do SIRESP foi reativada com uma antena móvel. Já não é a primeira vez que o SIRESP falha. Entre as diversas situações que já ocorreram, salienta-se outro fogo florestal em 2016 no Sardoal em que morreram dois bombeiros.
  • O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), responsável pela previsão das condições meteorológicas, terá alertado a Autoridade Nacional da Proteção Cívil sobre a possibilidade de ocorrência de trovoadas secas a norte do Distrito de Leiria e o risco de incêndio. Leiria estava catalogada pelo IPMA com o risco laranja (o segundo mais grave) em termos de risco de incêndio.

Quais são as dificuldades de prova desses crimes nessas três situações?

Tem de ser estabelecido um nexo de causalidade entre a negligência e as consequências da mesma.

Isto é, não basta provar a existência de uma situação de negligência. Tem de provar-se uma relação entre os erros cometidos por um agente de autoridade pública (ou privada) e as mortes que ocorreram, de forma a conseguir imputar a uma pessoa concreta a responsabilidade pela morte de alguém.

Peguemos no exemplo das 47 mortes que ocorreram na EN 236-1. Terão de ser recolhidas provas de que os militares da GNR tinham a informação de que aquela via rodoviária estaria em perigo ou ameaçada pelo fogo. Logo, teriam de que iriam colocar em perigo os cidadãos que seguiram as suas instruções.

O mesmo se diga sobre o não encerramento atempado daquela via rodoviária — quando o IC 8 foi encerrado às 18h50 de sábado. Teria de ser recolhida prova de que os elementos da cadeia de comando da hierarquia da GNR sabiam de que o fogo já estaria nas imediações da EN 236-1, o que acarretaria sempre perigo para as pessoas e bens.

O Comando Geral GNR, de acordo com o relatório preliminar que já enviou para o primeiro-ministro António Costa diz duas coisas:

  • Não havia, ao final da tarde/início da noite de sábado, “qualquer indicador ou informação que apontasse para a existência de risco potencial ou efetivo em seguir por esta estrada (EN 236-1) em qualquer dos sentidos”. Além disso, a GNR fala em “dificuldades operacionais na missão de cortar a EN 236-1”, pois são múltiplos os pontos de acesso.
  • “Foi num contexto de fenómeno invulgar que terão ocorrido os fatídicos acontecimentos da EN 236-1, uma vez que o fogo terá atingido esta estrada de forma totalmente inesperada, inusitada e assustadoramente repentina, surpreendendo todos”, lê-se no esclarecimento que foi enviado para o Governo a pedido do próprio primeiro-ministro.

GNR. Incêndio em Pedrógão Grande “surpreendeu todos” ao atingir EN 236-1

E as falhas do SIRESP?

As dificuldades de prova repetem-se no que diz respeito às falhas do serviço de comunicações de emergência do SIRESP que serve as forças de proteção civil e as forças de segurança.

Apesar de Constança Urbano de Sousa, ministra da Administração Interna, apenas admitir cortes intermitentes nas comunicações e negar um corte nas comunicações superior a 12 horas, certo é que não é a primeira vez que o SIRESP falha. Tal como o Observador noticiou, citando um relatório de abril último sobre um incêndio na zona do Alandroal em 2016, o sistema esteve em baixo durante 12 horas. O secretário-geral do SIRESP até prometeu ao Ministério da Administração Interna que em situações a reposição das comunicações seria mais “rápida e eficaz”.

Relatório. Depois de erros, SIRESP tinha prometido ao Governo que não ia voltar a falhar

Neste caso, o MP e a PJ terão de provar que as falhas que ocorreram estão na origem das mortes que ocorreram — lá está, tem de ser estabelecido um nexo de causalidade entre a negligência e a consequência. Isto é, que as falhas de comunicação impediram um socorro mais eficiente entre as diferente autoridades no terreno, nomeadamente entre a Proteção Civíl e a GNR, por exemplo, no que diz respeito ao corte de circulação na EN 236-1.

Neste caso, também teria de ficar provado nos autos que a avaria do SIRESP teria ocorrido por uma avaria técnica que seja imputável, por exemplo, à falta de manutenção. Ou que a reposição das comunicações (assente em viaturas que transportam uma antena móvel de grande porte) poderia ter sido mais rápida.

Mas mesmo que alguma das duas situações sejam difíceis de provar, subsistiria sempre uma dúvida: a quem imputar o crime?

Fazendo uma comparação com um caso semelhante. Quando ocorre um acidente de aviação, a causa do mesmo pode residir numa avaria técnica provocada potenciada por falta de manutenção ou manutenção deficiente. Neste caso, a negligência pode ser atribuída a quem devia ter ordenado a manutenção do aparelho ou a quem executou a mesma de forma deficiente.

No caso do SIRESP, a questão é mais complexa.

Os alertas da meteorologia podem ter importância na investigação criminal?

Não. Por que o próprio IPMA ‘absolve’ a Autoridade da Proteção Civil de qualquer responsabilidade.

Explicando. O IPMA deu com quatro dias de antecedência os alertas respetivos para a zona de Pedrógão Grande, informando sobre as altas temperaturas (perto dos 40.º) e baixa humidade. Na 6.ª feira, dia 16 de junho, o IPMA actualizou a sua informação em relação à velocidade moderada do vento: 18 km/h. A zona do norte de Leiria estava em alerta laranja (o segundo mais grave em risco de incêndio).

Contudo, Jorge Miguel Miranda, presidente do IPMA, informou o Governo que a tragédia de Pedrógão Grande foi o “resultado da conjugação da dinâmica do próprio incêndio e dos efeitos da instabilidade atmosférica, gerando downburst — vento de grande intensidade que se move verticalmente em direção ao solo, que após atingir o solo sopra de forma radial em todas as direções”, o que ajudou a propagar o incêndio a uma velocidade inusitada.

Downburst foi o fenómeno raro de vento que ajudou a propagar o incêndio, explica o IPMA ao governo

Antes, já tinha garantido ao Observador que é impossível prever com rigor os locais exatos onde as trovoadas secas ocorrem e deslocar antecipadamente para o respetivo local uma força de bombeiros.

Resumindo e concluindo: é possível uma acusação do MP?

À luz do que se sabe até ao momento, é pouco provável que o MP e a PJ venham a ter indícios suficientes para uma acusação no final do inquérito.

Contudo, ainda falta saber muito sobre a tragédia de Pedrógão Grande. Além das investigações que cada uma das autoridade públicas está a realizar à atuação dos seus respetivos funcionários, a pressão da Opinião Pública já fez o Governo admitir apoiar a constituição de uma Comissão Técnica Independente proposta pelo PSD na Assembleia da República. Tal comissão vai reunir toda a informação documental que se encontra nos serviços do Governo, Autoridade de Proteção Civil, GNR, SIRESP, entre outras entidades, de forma perceber-se em concreto o que aconteceu.

O inquérito do MP, além da sua autonomia e autoridade legal para recolher toda documentação que desejar, não deixará, certamente, de beneficiar com toda a informação que será recolhida no âmbito de investigações governamentais ou parlamentares.

A ação da Justiça esgota-se na área criminal?

Não. Quer as famílias das vítimas, quer até seguradoras, poderão processar o Estado ou as autoridades públicas de segurança e de socorro na Justiça Cível através de ações de responsabilidade civil.

Se se concretizarem tal tipo de ações, estará em causa o escrutínio do cumprimento do Código Civil no âmbito de ações judiciais que visam analisar eventuais situações de negligência da parte das autoridade públicas.

Nesse contexto, os autores das ações apenas terão de provar que existiu um dano (a morte de um familiar ou a destruição de um bem) e estabelecer uma relação entre esse dano e uma eventual negligência.

Neste tipo de processos, a prova é muito mais fácil do que num inquérito criminal. Por várias razões:

  • A negligência pode ser imputada a uma entidade coletiva: o Estado, a Autoridade Nacional de Proteção Civil, a GNR ou o SIRESP, por exemplo. E não a um agente concreto.
  • Não tem de ser provada a existência de dolo ou a intenção de causar perigo. Basta provar a negligência.

Acrescentadas declarações da procuradora-geral Joana Marques Vidal