Em 1958, estreou-se nos cinemas “A Epopeia de Dunquerque”, do inglês Leslie Norman. A fita centra-se no cabo “Tubby” Binns (John Mills), que depois da morte do oficial que comanda os restos do seu pelotão, consegue guiar os seus homens até às areias de Dunquerque, para serem evacuados numa embarcação civil. “A Epopeia de Dunquerque” celebra a coragem, a determinação e a capacidade de sacrifício do soldado britânico comum, bem como dos civis que se meteram nos seus barcos para irem a França salvar os militares encurralados nas praias pelo avanço alemão. O tom do filme é heróico e patriótico, e a derrota esmagadora e humilhante sofrida pelo Corpo Expedicionário Britânico nesse final de Primavera de 1940, é transformada numa vitória moral e da vontade, que reforça a unidade nacional.

[Veja o “trailer” de “A Epopeia de Dunquerque”, de 1958]

Não podia ser maior o contraste de “A Epopeia de Dunquerque” com “Dunkirk”, o novo filme de Christopher Nolan (“O Cavaleiro das Trevas”, “Interstellar”) que trata o mesmo tema: a Operação Dínamo, que consistiu na evacuação de cerca de 340 mil militares britânicos e franceses dos areais de Dunquerque entre finais de Maio e início de Junho, por navios da Marinha e barcos de pesca e de recreio (o chamado “Milagre de Dunquerque”), depois de Hitler ter dado ordem de paragem às tropas alemãs, por desejar ainda negociar a paz com a Grá-Bretanha. A escala visual de “Dunkirk” é larga mas o tom é soturno, a contextualização é mínima, a recriação dos acontecimentos é realista, descritiva e pouco edificante ( “salve-se quem puder!” é o sentimento dominante entre os soldados, que não recuam em roubar a identidade uns dos outros ou virar as armas contra os camaradas), e os actos heróicos são circunstanciais ou espontâneos.

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[Veja o “trailer” de “Dunkirk”]

Em vez de eleger uma personagem-pivô, como a de John Mills em “A Epopeia de Dunquerque”, Nolan, também autor do argumento, optou por uma personagem “colectiva”, a mole de soldados que se aglomeram na praia à espera da salvação, usando o soldado Tommy (o estreante Fionn Whitehead) como fio condutor e dividindo-se por três perspectivas complementares, em montagem paralela. A terrestre, com as situações na praia; a marítima, com as sequências passadas na água e nos barcos, em especial o da personagem de Mark Rylance; e a aérea, dos Spitfires, como o pilotado pela personagem de Tom Hardy. Os alemães praticamente não aparecem, nem há as habituais sequências-cliché nas salas de comando amiga e inimiga na rectaguarda, estando o “stiff upper lipp” a cargo do oficial de Marinha de Kenneth Branagh. O sentimentalismo patriótico e o “gore” de combate à Spielberg de “O Resgate do Soldado Ryan” metem folga.

[Veja a entrevista com Christopher Nolan]

Christopher Nolan, que estreou em “Dunkirk” câmaras IMAX operadas à mão, reduziu também ao mínimo estritamente necessário o uso de efeitos digitais. Estas duas escolhas resultam quer em sequências aéreas realistas com aviões da época que ainda voam e modelos de grande escala por controle remoto, muito longe dos disparatados combates aéreos virtuais dos filmes de II Guerra Mundial americanos; quer em impressionantes sequências nos navios, nomeadamente o que é torpedeado e dentro do qual os soldados recolhidos pouco antes morrem afogados antes dele se afundar. E assim os espectadores vêem-se no “cockpit” dos Spitfires mesmo juntinho aos pilotos, em pleno caos na ponte e no bojo inundado do navio atingido, e na pele dos soldados que, nos areais e nos pontões, desesperam de ser salvos.

[Veja a entrevista com Fionn Whitehead]

Por regra, os velhos filmes de II Guerra Mundial contavam com a participação da “realeza” dos actores britânicos (Sir Laurence Olivier, Sir Michael Redgrave, etc.), a que se juntavam as “estrelas” estabelecidas (Michael Caine, John Mills, Edward Fox e Richard Burton, por exemplo) e toda uma quantidade de actores secundários e “característicos”, vários deles especializados em papéis de militares (Trevor Howard, Jack Hawkins ou o inesquecível James Donald , entre muitos outros). A opção do realizador de usar actores estreantes ou pouco conhecidas em muitos dos papéis de “Dunkirk”, como sucede nos soldados na praia, para sublinhar o anonimato e realçar a tal personagem “colectiva”, funciona como um pau de dois bicos. Por um lado, esse desígnio é concretizado. Mas pelo outro, escasseiam as caras conhecidas que funcionem como “âncoras” dramáticas e de identificação e empatia para o espectador.

[Veja imagens da rodagem do filme]

Embora seja um filme livre de jingoísmo, “Dunkirk” não dispensa, mesmo no final, algum discreto agitar de bandeira e a evocação da bravata churchilliana do “combateremos nas praias” (coisa problemática, considerando os quase 70 mil mortos, feridos e prisioneiros e a enorme quantidade de material deixado para trás em França). Mas alguma da experiência humana no meio desta enorme catástrofe militar fica reconstituída de forma convincente, acompanhada por uma banda sonora de Hans Zimmer que anda entre Elgar entorpecido e metralha traduzida em música.