A Câmara Municipal do Porto e a promotora Lovers & Lollypops vão unir-se para reabrirem o Aniki Bobó, na Ribeira do Porto. O histórico bar, por onde passavam bandas em início de carreira como os Clã, Mão Morta e Madredeus, quer recuperar o terreno que o Porto perdeu para cidades como Lisboa, Braga e Guimarães nos circuitos da música alternativa e experimental.
Muito frequentado por melómanos e gente ligada às mais diversas artes, o Aniki Bobó abriu as portas em 1985 e foi dos primeiros, se não mesmo o primeiro bar do Porto a ter DJ. A programação cultural cuidada estava nas mãos do dono, António Guimarães, mais conhecido por Becas. Em 2004, Becas abriu o Passos Manuel junto ao Coliseu do Porto, onde ainda hoje funciona. O Aniki Bobó fecharia em 2005, numa Ribeira que se tinha tornado perigosa e que, por isso, afastava a clientela.
As portas dos números 36 e 38 da Rua da Fonte Taurina estão fechadas desde então, com a icónica placa em pedra, partida desde o início, como única pista para 20 anos de história. O prédio é propriedade da Câmara Municipal do Porto (CMP), que quando começou a pensar criar uma Fonoteca Municipal de Vinil imaginou que o Aniki Bobó podia acolher esse acervo. “Queríamos manter o espaço ligado à música, de dimensão arquivística mas também performativa”, explica ao Observador Guilherme Blanc, adjunto de Rui Moreira para a Cultura. No entanto, a autarquia acabou por decidir instalar a Fonoteca na futura Plataforma de Campanhã. O Aniki Bobó ficou outra vez sem destino.
Ao mesmo tempo, a CMP sentia que o Porto tinha perdido “o papel preponderante que chegou a ter na música contemporânea não erudita“, recorda o antigo adjunto do vereador Paulo Cunha e Silva.
“Por uma série de circunstâncias, houve um emagrecimento dessa dinâmica e hoje no Porto é difícil ouvir música nova, mais experimental, seja rock, folk ou jazz, com regularidade. Temos grandes festivais mas, se ao final da tarde eu quiser ouvir boa música no Porto, tenho dificuldade, com exceção da Sonoscopia, que faz um trabalho muito meritório e que tem concertos regulares. A cidade perdeu terreno face a cidades como Braga e Guimarães, e precisa de outra expressão a esse nível.”
Atenta a essa lacuna na cidade, a editora e promotora portuense Lovers & Lollypops, que vai levando os seus concertos de espaço em espaço, apresentou uma proposta à autarquia. Um dos objetivos era ter uma base operacional para deixarem de ser “só os visitantes” e poderem ser também anfitriões. Uma vantagem fundamental para integrar circuitos internacionais de música. A autarquia viu nessa proposta a solução para dois problemas.
O que Rui Moreira e Joaquim Durães, que fundou a Lovers & Lollypops no ano em que o Aniki Bobó fechou, 2005, querem dar à cidade é um espaço dedicado ao culto da música nova, experimental e de diferentes estéticas, adiantam ao Observador. Para dar força a esse objetivo, é preciso integrar o Porto no roteiro de redes europeias como a Liveurope, de que já fazem parte espaços como o Musicbox, em Lisboa, ou Café OTO, em Londres. A missão da Liveurope, por exemplo, é incrementar a inclusão de artistas europeus emergentes nas programações regulares de clubes e salas de concertos, ajudando-os a conquistar novos públicos. Mas há outras redes e canais do género.
Há vontade dessa rede em que o Porto faça parte, mas “não temos um único espaço com esse perfil, e é fundamental para entrarmos nos circuitos. Muitas das bandas que agora são destaques em festivais em Portugal começam sempre por aí”, explica Joaquim Durães. “Não estou a dizer que salas como o Passos Manuel ou os Maus Hábitos não o façam, mas é preciso um espaço que o faça de uma forma mais assídua, com uma visão programática focada na música ao vivo de diferentes linguagens.”
O espaço precisa de obras “mínimas” e de algumas atualizações tecnológicas para voltar a abrir portas. Mas nada se começará a fazer antes do dia 1 de outubro, dia das eleições autárquicas. “Isto é uma proposta de projeto à cidade, integrada no manifesto de Rui Moreira”, sublinha Guilherme Blanc. O manifesto, com as propostas do movimento independente, deverá ser divulgado nos próximos dias.
Se Rui Moreira voltar a vencer as eleições autárquicas, como em 2013, Guilherme Blanc estima que o Aniki Bobó possa estar a funcionar já em março ou abril de 2018. Não tanto por causa das obras, mas porque é preciso trabalhar a programação do espaço. Pelo Aniki Bobó vão passar “concertos intimistas”, diz Joaquim Durães, de artistas locais, nacionais e internacionais, bem como residências artísticas, uma opção importante na hora de integrar as redes europeias. A programação fica totalmente a cargo da Lovers & Lollypops, embora a CMP, enquanto parceira, porque cede o espaço a título gratuito, vá definir “um quadro programático” com algumas linhas guia.
Nesse quadro vai estar, por exemplo, a abertura a diferentes programadores. “A nossa ideia não é ficarmos fechados sobre nós”, acrescenta Joaquim Durães. “Este será um espaço de portas abertas para os parceiros, como a Amplificasom, a Favela Discos ou a Sonoscopia”. A hipótese de serem, enfim, anfitriões.
Um dos parceiros será o antigo proprietário, Becas. “Ele é o Aniki Bobó, foi ele que o criou e achámos que, dentro desta ideia de coprodução, isto só poderia ser feito com a participação do Becas”, explica Guilherme Blanc. “O Becas continua à frente de uma casa de cultura e de espetáculos muito específica e especial do Porto [Passos Manuel], por isso só fazia sentido avançar tendo esta ideia de relação com quem iniciou o Aniki Bobó. Queremos perceber o que foi o espaço, o quão importante foi, então haverá uma parte programática entregue a ele”, completa Joaquim Durães. Sempre numa “dimensão contemporânea”.
O espaço, que conta com um balcão superior lateral, tem capacidade para um centena de pessoas. Haverá um bar. “Mas o Aniki Bobó não vai ser um bar. Vai ser um espaço de música com bar“, esclarece Guilherme Blanc. “Achamos importante que a Ribeira, que é uma zona altamente turística, tenha conteúdos culturais vividos por todos”, acrescenta. É também na Ribeira que vai nascer o Museu do Vinho do Porto, no antigo edifício do Centro Regional de Artes Tradicionais, com frente para a Rua da Reboleira e o Muro dos Bacalhoeiros.
“Gostava que o Aniki Bobó fosse um sítio de exploração de novos sons”
O Aniki Bobó foi o espaço de referência da noite do Porto, frequentado por artistas, designers, músicos e outras figuras da cultura. O nome homenageia a primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, mas foi a música que marcou o espaço ribeirinho. “Estive emigrado em Toronto e quando cheguei quis abrir um espaço tipo armazém, ao nível daqueles armazéns americanos”, recorda Becas ao Observador. Encontrou um armazém — propriedade da CMP — onde se guardava sal junto ao rio Douro, fez obras e deu à cidade um bar com DJ, uma novidade em 1985. “No Porto os bares eram com música baixinho, onde se iam comer umas tostas e um prego.”
Não só deu destaque à figura do DJ como levou os concertos para o seu bar. “Pelo Aniki Bobó passaram todas as bandas nacionais que estavam a começar e as consagradas. Repórter Estrábico, Sétima Legião, SPQR [Rafael Toral, José Pedro Moura e Rodrigo Amado], Ena Pá 2000, Mão Morta, Clã, o Abrunhosa com a Ana Deus a cantar. Já imaginou isto?”. Becas também se recorda dos jovens Ornatos Violeta por lá a “conspirar” o futuro na música. E tantos mais. Anamar, Rádio Macau, Radar Kadafi.
Respirava-se arte, e não apenas a musical. De dois em dois anos, Becas convidava um grupo de arquitetos para intervir no espaço. Pedro Gadanho, diretor do novo Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia em Lisboa, projetou o sofá que estava suspenso no teto, em conjunto com Luís Tavares Pereira. Pedro Cabrita Reis também lá executou instalações. A ASAE também não ficaria contente de saber que por lá andava uma gata com nome de vodka, a Mosko (de Moskovskaya). “Em 1986 fizeram-nos uma inspeção daquelas normais, viram a gata e apanhámos uma multa de 90 contos. 600 0u 700 pessoas fizeram um abaixo-assinado para se manter lá a gata”, recorda.
À entrada, ainda está o preçário das bebidas. “A cerveja já custava 2,50€ naquela altura e estava sempre cheio”, diz, com orgulho. A estreia mundial dos Madredeus, em 1987, no TeCA, foi organizada por Becas, a abrirem para os Sétima Legião. “Passados três meses trouxe-os ao Aniki Bobó. Era mil escudos a entrada, era dinheiro! Legalmente cabiam 150 pessoas, mas chegavam a estar três ou quatro vezes esse número. Acho que a nossa maior enchente foi nos anos 80, numa conferência sobre o amor entre Miguel Esteves Cardoso e o Rui Reininho.”
António Guimarães não gosta muito de olhar para trás. Sempre gostou de ter os olhos postos no futuro, e é essa característica que faz dos espaços que gere caldeirões da cultura alternativa. Recorda apenas que em 2005 propôs à Câmara a compra do espaço, mas que o negócio não se podia fazer porque as autarquias não podem vender frações de prédios que sejam sua propriedade. Quando a iniciativa municipal “Um Objeto e seus Discursos” passou por lá, em 2016, Rui Moreira disse-lhe que o Aniki Bobó seria um espaço cultural no futuro, onde ele teria sempre uma palavra a dizer.
“Manteve a palavra”, afirma. Esclarece que não terá nada a ver com a gestão. “Apenas fiquei com a responsabilidade de programar um acontecimento lá por mês. Não vou regressar à Ribeira, sempre que vou lá fico mal disposto.” Não quer nada com a Ribeira porque se lembra dos últimos anos que lá passou, com a insegurança que se vivia na zona.
“Acredito no trabalho da Lovers. Quanto a mim, acho que me vou dedicar mais às bandas portuguesas. Não sou revivalista. É possível eu convidar um musico dos Rádio Macau e outro dos Sétima Legião e tentar recriar uma ou outra coisa que aconteceu lá, mas quero programar coisas novas, chamar pessoas sem espaço de antena e pô-los a fazer coisas. Mas ainda não pensei muito nisso.”
Se o espaço fosse novamente seu, gostava que o Aniki Bobó fosse “um sítio de exploração a novas coisas, especialmente de som”. Algo experimental, de formação de públicos. “Chegávamos a levar 400 ou 500 pessoas para ouvir eletrónica conceptual!”